A tradição e a história das festas d’agonia
Agosto chega a Viana do Castelo com um brilho próprio. O rio Lima reflete as luzes da cidade, as varandas enchem-se de colchas e rendas, as ruas perfumam a noite com manjerico e rosmaninho. Para quem chega, quase sempre para a frente ribeirinha, há um som de concertina ao longe e o rumor alegre de uma romaria que se preparou meses a fio. É neste cenário que se afirma uma das festas mais identitárias de Portugal: uma celebração que entrelaça fé e ofício, mar e monte, ouro e linho.
A festa é muito mais do que o seu cartaz ou o seu programa. Vive no gesto, no bordado, no toque do sino e na paciência de quem faz tapetes floridos madrugada dentro. E por detrás do brilho há séculos de história.
Origens de uma devoção marítima
A invocação de Nossa Senhora da Agonia nasceu ligada ao mar e aos que dele dependiam. Em Viana do Castelo, porto ativo desde tempos medievais, a devoção ganhou raízes quando os pescadores começaram a confiar à Virgem o regresso seguro e a faina com fartura. A primeira ermida ergueu-se junto de terrenos alagadiços, de frente para a barra, quase a olhar de igual para igual o oceano que tanto dava quanto tirava.
A transição de pequena capela para santuário foi acompanhando a afirmação da cidade. A igreja mais ampla, de talha dourada luminosa e painéis que contam episódios de fé, consolidou uma ligação emocional. As procissões cresceram, espalharam-se pelas ruas e chegaram ao cais, onde a bênção às embarcações se tornou gesto tido como indispensável, sobretudo em anos de mar bravio.
A devoção era, acima de tudo, gesto de reciprocidade: o mar dá, o povo agradece, a Senhora protege. Esse triângulo ajudou a fixar, no calendário, um momento de reunião anual que atravessou séculos.
Da romaria de aldeia a celebração nacional
Ao longo do século XIX, Viana consolidou-se como praça urbana, com ofícios prósperos e ligações a outras paragens. O encontro anual em honra da Senhora ganhou novas dimensões. Passou a reunir não apenas pescadores e famílias do litoral, mas também lavradores do Alto Minho, artífices, ourives e comerciantes. Cada qual trazia um contributo: a alegria do gado e dos carros de bois, as tocatas de cavaquinho e braguesa, as danças herdadas de gerações.
No século XX, com a rede ferroviária, as estradas e o cuidado crescente pelo património popular, a romaria deu o salto. O cortejo etnográfico sistematizou a diversidade rural e urbana num desfile de grande fôlego. A cidade pôs o seu ouro à vista, não como ostentação vazia, mas como linguagem de identidade. As ruas receberam arcos de romaria, os gigantones e cabeçudos ganharam nomes e cumplicidades, a queima de fogo no rio fez do Lima um palco de luz.
O que começou como encontro de gratidão e súplica transformou-se num grande retrato coletivo onde cada freguesia mostra quem é. E quem olha de fora passa a perceber que o Minho não é uma ideia vaga, é um conjunto de vozes, cores e objetos com espessura.
Rituais e símbolos que dão forma à festa
Há elementos que, juntos, criam o mapa emocional da celebração:
- Procissão solene com andores trabalhados, baluartes de flores e uma cidade engalanada.
- Cortejo da Mordomia, com centenas de mulheres de traje à vianesa e muito ouro, num deslumbre de cor e textura.
- Cortejo Etnográfico, onde comparecem lavoura, artes e ciclos do ano, do linho ao milho, da vindima à desfolhada.
- Procissão ao mar e bênção dos barcos, gesto que liga a igreja ao cais, os cânticos às sirenes.
- Gigantones e cabeçudos, personagens que fazem rir e dançar, memória viva de uma feira antiga.
- Tapetes floridos e arruamentos ornamentados, obras de arte efémera que desafiam o tempo e o sono.
- Fogo do rio, espetáculo de pirotecnia que envolve as duas margens e o monte de Santa Luzia.
- Feiras e mercados, com ourivesaria, bordados, louça, doçaria e outros saberes.
- Rusgas e bailes, encontros espontâneos onde as concertinas não se calam.
Tudo se articula, quase como se a cidade inteira fosse um grande palco. E no centro, a ideia de promessa e agradecimento.
O traje à vianesa e o ouro que fala
Poucas imagens são tão reconhecíveis como o traje feminino de Viana. Não é um uniforme, é um conjunto de variações. Há o traje de lavradeira de cor viva, o de noiva em tons mais sóbrios, o de domingar, o de trabalho. Todos partilham detalhes que contam histórias.
- Saia rodada, com barras de veludo e bordados.
- Colete cintado, que realça a postura.
- Avental rico, com motivos florais e geométricos.
- Lenço da cabeça e do peito, cada nó tem uma lógica, cada dobra um hábito.
- Camisa de linho com renda, punhos e peitilhos trabalhados.
- Meias brancas caladas e chinelinhas.
Depois, o ouro. Cordões, grilhões, laças, cruzes, relicários e o conhecido Coração de Viana. O conjunto não é aleatório. Uma família pode guardar peças durante gerações, somando novas aquisições ao longo de batizados, casamentos e promessas pagas. O ouro faz a ponte entre o sagrado e o profano. É investimento, amuleto, peça de arte, herança afetiva. Nas ruas, quando a mordomia desfila, o brilho é sol, mas também é memória.
Para perceber melhor, vale passar pelo Museu do Traje, onde se vê, de perto, a complexidade do bordado e a racionalidade de cada peça. Fica claro que o traje é linguagem e arquivo.
Um calendário vivo
Sem cair no detalhe moroso, é possível desenhar um esboço de programa que se repete, com alterações pontuais, ano após ano. A tabela que se segue é apenas indicativa e ajuda a organizar a visita.
Dia | Destaques principais | Ambientes a não perder |
---|---|---|
Quinta | Abertura oficial, gigantones e cabeçudos, concertos | Ruas do centro histórico, praças animadas |
Sexta | Cortejo da Mordomia, rusgas, tapetes em preparação | Zona antiga, ateliers abertos e lojas de ouro |
Sábado | Cortejo Etnográfico, fogo do rio, feira a todo o vapor | Margens do Lima, ponte, jardins ribeirinhos |
Domingo | Procissão solene, bênção ao mar, encerramento com música | Cais, santuário, ruas engalanadas |
Em muitos anos as datas centrais coincidem com o dia 20. Noutros, ajusta-se o fim de semana mais próximo. Convém espreitar o programa oficial e reservar com antecedência.
Arte efémera: tapetes floridos e arruamentos
A beleza dos tapetes floridos não se explica apenas por fotografias. É preciso ver os vizinhos de joelhos, a desenhar contornos com serrim colorido, a preencher fundos com pétalas, hortênsias e malmequeres, a compor letras e símbolos. O trabalho começa na véspera e dura noite adentro, entre conversas, termos de papel e moldes reaproveitados.
Os arcos erguidos nas ruas combinam madeira, ferro e flores. A geometria é tradicional, mas a execução é renovada todos os anos. A preparação é um momento comunitário. Quem não desenha ajuda a carregar baldes, quem não enfeita faz café, quem passa dá uma palavra. Ao nascer do dia, as ruas transformam-se em corredores de cor que recebem a procissão como se fosse a primeira vez.
Este cuidado dá às festas um caráter coletivo raro: a cidade não assiste, participa.
Som, dança e comida
As danças minhotas fazem parte do ADN da celebração. O vira, a chula, o cana verde, o malhão ganham corpo nos ranchos folclóricos, mas também nas rusgas espontâneas. É fácil ver grupos inteiros a girar, a bater palmas, a chamar mais gente para o meio. No canto da praça, a concertina ensaia um tema, ao fundo o cavaquinho responde, e a festa não pede licença.
A música chega longe, mas nunca chega sozinha. Há aromas que confirmam a época: caldo verde com broa, rojões à minhota, papas de sarrabulho e arroz de sarrabulho, pataniscas, bolinhos de bacalhau, sardinha ainda lembrada apesar de agosto já pedir mais carapau e salada de feijão frade. O vinho verde, fresco e ligeiro, acompanha mesas de família e encontros de amigos. Nas feiras, as farturas adoçam o ritmo e as regueifas pedem partilha.
É também tempo de visitar as tasquinhas das associações e coletividades. A cozinha caseira dá a medida de um território. O que se come conta tanto como o que se canta.
Impacto económico, ofícios e futuro
Uma festa deste tamanho é motor de atividade. Hotéis e alojamentos enchem, restaurantes e cafés estendem horários, os mercados sentem maior fluxo, os artesãos ganham visibilidade. A ourivesaria tradicional descobre novos clientes, os bordados encontram interessados atentos, a latoaria e a cesteira mostram que a mão e o tempo são matéria de qualidade.
Este dinamismo coloca desafios. Como proteger o centro histórico do desgaste? Como manter o equilíbrio entre visitantes e residentes? Como garantir que a festa continua de todos, com portas abertas, mas sem cair na banalidade?
Muitas respostas passam pelo cuidado. Incentivar copos reutilizáveis, apostar em recolha seletiva, reduzir plásticos, envolver escolas e associações na preservação de práticas, valorizar palcos para criadores locais, testar horários que distribuam melhor os fluxos. O fogo do rio, que encanta, pede também tecnologia mais limpa e desenhos que respeitem aves e margens.
A festa tem futuro quando não fica igual a si própria e, ao mesmo tempo, não abdica de si. Essa tensão criativa, típica de Viana, é um dos segredos do seu vigor.
Dicas práticas para quem quer ir
- Reservar estadia cedo. Agosto é mês concorrido e a cidade tem procura global.
- Chegar de comboio é boa ideia. A estação fica central e as ruas ganham vida a pé.
- Levar calçado confortável. O centro convida a percursos longos e a colinas discretas.
- Ver o fogo do rio em margem ampla. A zona ribeirinha e a ponte criam bons ângulos.
- Respeitar os tapetes floridos. São frágeis e pedem cuidado redobrado.
- Se quiser fotografar mordomas, pedir com simpatia. O sorriso é quase sempre devolvido.
- Provar o que é local: broa, enchidos, queijos, conservas de peixe e doces regionais.
- Visitar os museus nos intervalos. Dão contexto e tempo de respirar.
Pequenos gestos fazem a diferença. Um saco de pano evita lixo, um cumprimento abre conversa, uma compra num artesão ajuda a fixar um ofício.
Lugares e memórias para ligar os pontos
Nos dias da festa, há sítios que ganham outro sentido:
- Santuário de Nossa Senhora da Agonia, onde se percebe a espinha dorsal religiosa.
- Basílica e miradouro de Santa Luzia, vista circular sobre rio, mar e cidade.
- Museu do Traje, indispensável para compreender cortes, materiais e técnicas.
- Navio Gil Eannes, memória da pesca longínqua e da coragem no Atlântico Norte.
- Praça da República, coração onde tudo passa e volta a passar.
- Jardins e margens do Lima, lugar ideal para pausa e para ver as montagens do fogo.
Entre visitas, é possível encontrar oficinas abertas, onde o bordado se mostra em bastidores e o ouro se explica no detalhe.
O mar, a cidade e a promessa
Uma romaria vive de promessas. Algumas são ditas em silêncio, outras partilhadas em voz baixa, outras saem à rua em forma de pendente de ouro ou vela acesa. Viana aprendeu a dizer o seu obrigada com muitas vozes. Não há duas mordomas iguais, nem dois tapetes iguais, nem um fogo do rio semelhante ao do ano anterior. Essa diferença constante alimenta a vontade de voltar.
Quem chega sem passado sente-se convidado a entrar. Quem tem raízes reconhece gestos, casas, cheiros. Entre os dois, a cidade constrói uma memória comum. As festas não são uma peça de museu, são prática viva. E, por isso, transformam-se sem perder o alvo: a devoção que liga mar e gente.
Histórias dentro da história
Com o tempo, acumulam-se episódios que a cidade guarda. O gigantone que caiu numa esquina e se levantou com aplauso, a vez em que a névoa engoliu o fogo e a multidão percebeu que a festa estava nas pessoas ali ao lado, o desfile em que uma noiva de Viana apertou a mão a uma criança e o ouro brilhou como se fosse sol. Os relatos passam de boca em boca, ganham variações, fixam uma ideia simples: a festa é feita por pessoas concretas.
É por isso que os ensaios dos ranchos importam tanto, e os grupos de vizinhos que inventam um arco diferente, e os ourives que teimam em desenhar uma arrecada como se fosse a primeira. Há lugar para inovação e para a medida certa da tradição.
O que fica depois
As luzes apagam-se, a cidade arruma os arcos, as casas recolhem as colchas e guardam as jóias. Fica, porém, um lastro. Muitos visitantes regressam fora de agosto para ver a cidade em sossego, percorrer a frente ribeirinha, subir ao monte, demorar-se em cafés onde o tempo corre mais devagar. Os artesãos ganham clientes que voltam, os museus recebem públicos atentos, as ruas mantêm uma energia discreta, como quem conta os dias para o próximo reencontro.
E Viana continua a olhar o rio. Nesse olhar cabe tudo: o que já foi, o que ainda é e o que há-de vir. Quem assistiu uma vez percebe. O som de uma concertina numa esquina, o brilho de um coração de ouro ao sol da tarde, o reflexo das luzes no Lima em noite clara. Basta isso para entender por que motivo esta celebração guarda, com firmeza, um lugar na memória coletiva do país.