Descobrindo histórias e lendas da senhora d’agonia
Quem chega a Viana do Castelo em agosto percebe de imediato que ali o mar fala, a cidade canta e a fé caminha de mãos dadas com a festa. Em volta de Nossa Senhora d’Agonia vive um tecido de histórias e lendas que atravessam séculos, navegando entre a devoção dos pescadores, a arte da filigrana e a alegria das ruas. Há versões e versões, memórias que se repetem em voz baixa ou em plena praça, e cada família guarda um episódio que liga a Virgem à sua própria vida. É nessa mistura entre o que se conta e o que se faz que a romaria cresce, ano após ano, sem perder a alma.
Como começou a devoção
A presença de Nossa Senhora d’Agonia em Viana nasce de um encontro íntimo com o mar. A cidade sempre viveu virada para a foz do Lima, e com ela conviveram homens e mulheres que sabiam a força das correntes, os ventos traiçoeiros e as noites intermináveis em alto-mar. Quando o perigo rondava, a invocação da Senhora surgia como colo e como promessa.
Registos antigos situam o culto a partir de meados do século XVIII, momento em que uma capela ganha forma e devoção. Antes disso, há referências dispersas a irmandades de mareantes e a votos cumpridos por pescadores salvos de temporais. A passagem de capela a santuário acontece com o tempo, acompanhando a crescente afluência de fiéis, a ornamentação do interior e a afirmação de uma festa anual que reúne a cidade e a região.
A escolha do nome não é arbitrária. Agonia, palavra que ecoa sofrimento e esperança, associa a Mãe à hora crítica, quando tudo parece vacilar. Para quem vivia do mar, esse instante tinha um rosto, um cheiro e um som. E a resposta era uma presença: a Senhora no cais, na proa das embarcações, nas orações murmuradas antes de largar.
Lendas que se contam à beira do Lima
As lendas são mapa e bússola. Nem sempre coincidem com arquivos, mas explicam aquilo que as pessoas sentem. Três sobressaem nas conversas com vianenses e romeiros.
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A imagem nas redes
Pescadores que regressavam numa madrugada cinzenta sentem o peso mudar. Ao içar as redes, em vez de peixe surge uma pequena escultura de Nossa Senhora. Diz-se que a levaram à igreja mais próxima, mas no dia seguinte a imagem aparecia junto ao Cabedelo, como se mostrasse o seu lugar. Insistiram mais uma vez, o mesmo aconteceu. A mensagem era clara: nas margens do Lima erguer-se-ia a sua casa. -
A promessa sob a tempestade
Enfrentando um mar revolto, uma tripulação implora proteção e promete que, se voltar com vida, todos os anos haverá uma procissão ao rio para agradecer. Registada pela memória coletiva, esta história fundamenta a Procissão ao Mar e ao Rio, em que a imagem vai abençoar as embarcações e os homens que delas vivem. -
O coração que esperou
Uma rapariga de Viana dá ao noivo um coração de filigrana como penhor. Ele parte, a guerra e o mar atrasam o regresso. Ela veste de negro e promete oferecer um coração maior à Senhora se ele voltar. Um dia, o sino toca de forma diferente, os barcos entram no estuário e a cidade corre ao cais. A promessa cumpre-se e, desde então, o coração de Viana ganha estatuto de símbolo. Mais do que joia, sinal de compromisso.
Estas histórias, contadas ao serão, lembram que a festa tem sempre um motivo de gratidão.
O que a romaria faz acontecer
Durante vários dias de agosto, Viana transforma-se. Há horas que merecem atenção, quer se chegue pela primeira vez, quer se regresse todos os anos.
- Alvorada com foguetes e Zés Pereiras, cedo, quando a cidade acorda com bombos e gaitas de foles.
- Gigantones e Cabeçudos a percorrem as ruas, arrancando sorrisos de miúdos e graúdos.
- Desfile Etnográfico, vitrina viva dos trajes, ofícios, embarcações tradicionais e formas de trabalhar a terra e o mar.
- Procissão ao Mar e ao Rio, momento de recolhimento que leva a imagem até à água, entre apitos de barcos, sinos e silêncios respeitosos.
- Tapetes de sal, floridos de madrugada, onde se pisa com cuidado e devoção.
- Serenata de fogo sobre o Lima, espetáculo que junta luz, música e reflexos na água.
- Cortejo da mordomia, onde brilham os trajes e o ouro que cada família guardou, herdou e cuida.
É uma festa que não se limita ao centro histórico. Bairros, coletividades, ranchos e paróquias têm mão na obra. E isso nota-se nos pormenores.
Trajes, ouro e filigrana
A romaria tem dois palcos, a rua e o corpo. No corpo, os trajes contam a história de um território que ama detalhes.
- Traje de lavradeira, em vermelho e preto, bordado com motivos florais e agrícolas.
- Traje de mordoma, a versão mais rica, com saias de cores intensas e camisas de linho trabalhadas.
- Traje de noiva, branco ou marfim, com véu e filigrana mais discreta mas cheia de significado.
- Trajes de trabalho e de domingar, refletindo o uso de cada dia e de cada festa.
A filigrana, com o coração de Viana como emblema, pede técnica apurada. Fios finíssimos trançam-se sem pressa, formando arabescos que se reconhecem à distância. O ouro, passado de mães para filhas, soma memórias, batizados, bênçãos e aniversários. Na mordomia, a ostentação é celebração de família, de ofícios e de uma identidade que não tem vergonha de brilhar.
A procissão ao mar, por dentro
Para quem assiste, a procissão ao mar parece simples. Na prática, envolve cuidado, tradição e um sentido profundo de missão. A imagem é transportada em andor até ao cais. Há quem leve promessas gravadas no olhar, quem carregue fotografias de familiares desaparecidos no mar, quem acompanhe em silêncio.
Chegada à água, a bênção ganha várias línguas: toques de buzina, sinais de luz, gestos de marinheiros, crianças ao colo. Os barcos decorados alinham-se, alguns com redes e panos coloridos. Por um instante, cidade e rio respiram juntos. É comum ver homens de mãos calejadas fazerem o sinal da cruz com uma delicadeza que contrasta com a dureza do trabalho.
Histórias de quem faz a festa
Nenhuma lenda vive sem pessoas que a transportem.
- O mestre de embarcação que, em jovem, ficou duas noites à deriva e prometeu uma fita azul a Nossa Senhora se chegasse a terra. Cinquenta anos depois, acompanha, de boné na mão, o andor junto ao cais, sempre com uma pequena fita no bolso.
- A bordadeira que aprendeu com a avó a encher panos de cor e que, durante o ano, prepara um traje para oferecer à filha quando esta entrar na mordomia. Diz que cada ponto é uma reza, e não é metáfora.
- O ourives que insiste em ensinar aprendizes, para que a filigrana não fique só em museu. Os dedos dele movem-se com o ritmo de quem sabe que património é o que se usa.
Pequenos gestos destes mantêm a festa quente.
Tapetes de sal, uma noite branca
Na noite que antecede a passagem da procissão, ruas inteiras pintam-se com sal colorido. Famílias, vizinhos, escolas e associações trazem moldes, baldes e um desenho partilhado. O trabalho avança até às primeiras luzes do dia.
Detalhes:
- O sal é tingido com pigmentos, em tons que lembram jardim e mar.
- Os desenhos misturam âncoras, peixes, corações, ramos de videira, pombas, cruzes e ondas.
- As linhas têm de ser precisas, porque um passo em falso desfaz horas de esforço.
Quando a procissão passa, ninguém vive isto como destruição. O pisar consagra. O sal cumpre o seu papel e volta ao rio na chuva que vier.
Linha do tempo breve
Nem tudo tem data certa, porque a festa cresce também a partir da oralidade. Mas ajuda ter um mapa aproximado.
Período | Acontecimento | Sinais que ficaram | Prática atual |
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Séculos XVII e XVIII | Afirmação das confrarias ligadas ao mar, início do culto a Nossa Senhora com a invocação da Agonia | Promessas de pescadores, pequenos ex-votos | Procissão ao Mar como voto anual |
Século XIX | Ampliação do espaço de culto e do calendário festivo | Aumento de romeiros, reforço do papel das mordomas | Cortejos e desfiles mais organizados |
Primeira metade do século XX | Consolidação dos trajes, ranchos e gigantones | Identidade minhota afirmada na rua | Desfile Etnográfico anual |
Décadas de 1960 a 1980 | Inovação nos espetáculos de fogo e música | O rio como palco de luz | Serenata de fogo no Lima |
Século XXI | Valorização do património imaterial, mais visitantes e meios digitais | Partilha global, cuidado com tradição | Salvaguarda dos ofícios, formação de jovens |
É um quadro simplificado, mas ajuda a situar ritmos e continuidades.
O que ver e quando ir
Se o objetivo é viver as lendas na prática, a agenda ajuda.
- Chegar dois dias antes do feriado de 20 de agosto permite ver a cidade a montar a festa.
- Madrugar nos dias dos tapetes de sal para acompanhar, com respeito, o trabalho dos moradores.
- Guardar lugar junto ao cais para a procissão ao mar, sem empurrões e sem ocupar espaços reservados a quem carrega o andor.
- Assistir ao desfile etnográfico com um olhar atento aos detalhes: alfaias agrícolas, redes, miniaturas de barcos, gestos dos dançarinos.
- Reservar tempo para visitar o santuário em silêncio, à margem da multidão.
Pequena dica para fotografia: perguntar antes de fotografar mordomas e crianças, evitar flash dentro do santuário e, sempre que possível, enviar depois a foto à pessoa retratada. É um gesto que cria laços.
O papel do rio e do vento
A geografia manda. O Lima não é cenário, é personagem. Uma história contada em Viana tem cheiro a maresia, e isso determina ritmos. Há brisas que levantam saias e que fazem chocalhar o ouro, há marés que impõem a hora exata da bênção, há nevoeiros de manhã que pedem paciência.
Quando o vento se levanta, os bombos parecem bater mais fundo. Quando acalma, o fogo de artifício reflete-se inteiro na água. A própria música tradicional, com gaitas e caixas, responde a esta conversa com o tempo e com o espaço.
O que as lendas ensinam
As lendas não precisam de prova para terem valor. Servem para orientar.
- Confiança: quem parte para o mar sabe que não controla tudo, e a fé ajuda a fazer caminho.
- Memória coletiva: cada ex-voto, cada fio de ouro, cada bordado acrescenta uma camada ao que recebemos.
- Gratidão: promessas cumpridas, procissões que se mantêm, tapetes que se deixam pisar.
No convívio com as lendas, o presente ganha densidade.
Gastronomia que acompanha
Festa que se preze também se saboreia. Em Viana, o peixe fresco impõe-se: sável e lampreia em época própria, robalo, sardinha assada no verão. Doçaria com tradição conventual, como os sidónios e as bolas de Berlim com creme de feijão, fazem parte do roteiro de quem caminha horas. E há a alegria das tasquinhas, onde se fala alto e se ri com os amigos que regressam.
Refeições que chegam à mesa durante a romaria contam outra história: a da partilha. Há sempre mais um lugar, um copo que circula, um prato que se divide.
O cuidado de quem organiza
Bastidores asseguram que tudo corra bem. Autoridades, voluntários, confrarias, ranchos, associações de moradores, escolas e empresas locais articulam-se em semanas de trabalho. Sinalética, acessos, proteção do património, limpeza das ruas, apoio a pessoas idosas e a quem tem mobilidade reduzida. O cuidado é visível e invisível.
Para quem visita, o contributo também existe:
- Não subir a estruturas ou muros antigos.
- Recolher lixo e respeitar zonas de passagem.
- Comprar a produtores e artesãos locais, escolhendo peças com qualidade certificada.
Pequenos gestos mantêm a romaria sustentável e justa para quem a vive todo o ano.
Viana espalhada pelo mundo
Há quem tenha partido para França, Suíça, Estados Unidos, Brasil, Angola. Em agosto, muitos regressam. Chegam com filhos e netos, numa mistura de sotaques que anima as ruas. Para essas famílias, a romaria é casa. Tira-se o traje da arca, reacendem-se amizades, apresentam-se bebés à Senhora com um beijo discreto.
Do outro lado, quem fica durante o ano vai segurando a chama. Ensaios de rancho, aulas de bordado, oficinas de filigrana, manutenção de embarcações tradicionais, catequeses e encontros de confrarias. A lenda não adormece, trabalha-se.
Rota curta de património
Entre momentos da festa, vale a pena olhar para o património que enquadra as histórias.
- Santuário de Nossa Senhora d’Agonia, com a sua escadaria e elementos decorativos que falam da devoção.
- Centro histórico, onde cada largo guarda uma história de comércio, de mar e de emigrantes.
- Navio Gil Eannes, memória viva de assistência à frota bacalhoeira, ancorado como museu.
- Miradouros no Monte de Santa Luzia, para ver a cidade, o rio e o mar numa só moldura.
Estes pontos ajudam a ligar as lendas ao chão que as sustenta.
Para quem lê as lendas pela primeira vez
Há quem se aproxime com curiosidade, procurando separar mito de facto. É legítimo. Ainda assim, convém lembrar que o essencial não é provar quem encontrou a imagem nas redes, nem qual a primeira mordoma a usar determinado fio. O essencial é perceber por que razão estas narrativas seguem vivas, resistindo a modas e modismos.
Talvez a resposta esteja no modo como a romaria reúne contrastes:
- Luxo do ouro com a humildade de quem o carrega.
- Silêncio da oração com o estrondo dos bombos.
- Delicadeza dos tapetes de sal com o passo firme da multidão.
Entre estes extremos, a cidade encontra um tom que é só dela.
Uma história que continua
As lendas da Senhora d’Agonia não são peças de museu. Sofrem pequenas variações, ganham detalhes, perdem outros, acompanham mudanças no trabalho do mar e na vida urbana. O coração de Viana aparece hoje em bijuteria contemporânea, nas vitrinas e no pescoço de adolescentes, e isso não apaga a sua origem. Pelo contrário, amplia-a.
A romaria acolhe novas linguagens sem abdicar da sua raiz. Redes sociais mostram os tapetes de sal a nascer, mas a paciência dos que os fazem não depende de likes. O fogo sobre o rio tem novas tecnologias, mas continua a procurar o espanto no rosto de quem olha para cima e vê desenhada no céu a luz de uma cidade inteira.
No final de um dia cheio, a maré sobe e desce como sempre. Ao longe, ouvem-se passos apressados, alguém corre para não perder o cortejo, uma família ajeita o lenço da menina que vai pela primeira vez como mordoma. O sino marca a hora. E, no murmúrio coletivo, percebe-se que as histórias e lendas continuam a ser ditas, não para repetir passado, mas para dar ao presente uma luz que não se apaga com o vento do Lima.