Recordar os dias como emigrou e deixou Viana
Saudade é palavra grande quando a partida acontece com o Lima a brilhar nos olhos. O primeiro dia longe de Viana nasce com relógio apertado e coração largo, a mala arrumada a medo e aquela sensação de que o corpo viaja, mas parte dele fica sentado nos degraus de Santa Luzia a ver o sol pousar no Atlântico. Quem emigrou carrega duas geografias, a do mapa novo e a do mapa íntimo, desenhado com cheiros de maresia, o som das concertinas em agosto e o brilho miúdo da filigrana a desafiar a luz.
Não é só nostalgia. É trabalho, é rotina, é aprender a pedir café noutra língua e ainda assim ouvir, lá ao fundo, o pregão da feira dos sábados na Praça da República. É saber que o tempo passa diferente quando o cérebro faz contas ao fuso horário da família. E, às vezes, é um simples pedaço de broa que salva o dia.
As cidades que nos levantaram deixam sementes nos gestos. Viana fica nos bolsos com a leveza dos dias bons, e com o peso terno das memórias que se recusam a murchar.
A mala leve e a terra funda
Quem sai acredita que volta. Mesmo quando sabe que a vida vai pedir raízes noutro sítio, a frase que se repete é sempre a mesma, volto para as Festas. Esse compromisso simples cola-se ao calendário e dá coragem. Setembro é longe, dezembro passa depressa, e de repente agosto aproxima-se com promessas de luzes, mordomas, gigantones e cabeçudos a abrir caminho.
A mala do primeiro regresso é diferente da mala da partida. Traz garrafas de Loureiro para oferecer aos novos amigos, farinha para bolas de Berlim feitas por teimosia no apartamento arrendado, um coração de Viana que alguém pediu, e aquela carta escrita com cuidado para a tia que nunca falha a procissão. E traz, escondida entre meias e camisolas, aquele medo antigo de já não reconhecer a juventude dos lugares.
Quem emigra aprende cedo que a terra não precisa de proximidade para ser presente. A terra funda é uma música que toca baixinho, todos os dias.
O que fica colado aos sentidos
Há símbolos que, dizia a avó, trazem a cidade inteira num só objeto. Não é superstição, é treino de memória.
Símbolo de Viana | Memória que acorda | Como recriar longe |
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Coração de Viana em filigrana | O brilho nas festas, as mordomas alinhadas, o silêncio breve quando a procissão passa | Pendurar um coração na cozinha, contar a história aos filhos, oferecer a amigos que perguntam |
Ponte Eiffel sobre o Lima | O frio da manhã atravessada a pé, comboios a cortarem o nevoeiro, o rio como um espelho inquieto | Fotografar pontes onde se vive e enviar para casa, fazer um álbum de pontes que lembram a de Viana |
Santa Luzia | Subir as escadas com promessas miúdas, olhar circular que encaixa mar e rio na mesma moldura | Escolher um miradouro na nova cidade e repetir o ritual, um café e um pensamento alto |
Festas da Senhora d’Agonia | Concertinas, fogo de artifício, mar a responder com respirações largas | Juntar meia dúzia de vianenses emigrados em agosto, vestir uma peça tradicional, dançar nem que seja na sala |
Rio Lima | Cheiro de água doce a encontrar água salgada, gaivotas com conversa séria | Caminhar junto de um rio onde se vive, levar um pão para as aves, falar com elas como se fossem as do Lima |
Rojões e arroz de sarrabulho | Almoços demorados, a família a discutir tudo e nada, vinho verde a refrescar a conversa | Cozinhar em casa ao domingo, convidar vizinhos, explicar que a doçura da canela combina com a coragem do Minho |
Estes sinais são atalhos. Um gesto, uma imagem, e o corpo inteiro recorda.
Agosto, mês que estica o coração
Uns chegam com matrícula L, outros com F, CH, LU, GB ou até do outro lado do Atlântico. A estrada enche-se de histórias e sotaques que deslizaram para longe e voltam a assentar. O cheiro das sardinhas, o brilho da filigrana, a música que nunca se esquece, uma noite que não quer acabar. Agosto em Viana é festa e é abraço.
Quem vive fora traz novidades e traz vontade de ouvir as velhas novidades de sempre. Mudanças na cidade, um café novo ao lado da Sé, um banco pintado de fresco na praça, um vizinho que partiu, um bebé que chegou. O regresso de agosto tem muito de inventário afetivo.
Nesse encontro, há uma sabedoria possível. O saber que a saudade dói menos quando vira comunidade.
Pequenos rituais que seguram a cidade dentro
A distância exige prática. Não é só lembrar, é fazer. Algumas ideias que funcionam para muita gente:
- Criar uma playlist com cantigas do Minho, concertinas, um ou outro fado que se colou às pedras da Ribeira.
- Colecionar fotografias das sombras da tarde nos edifícios, para recriar o tom de luz de Viana longe de Viana.
- Telefonar ao domingo antes do almoço, sempre à mesma hora, para que a semana saiba a família.
- Levar Loureiro ou Trajadura a jantares com colegas, explicar de onde vem o frescor daquela acidez.
- Cozinhar papas de sarrabulho no inverno, sem medo do cheiro a ficar nas cortinas, como ficava na casa da avó.
- Guardar num caderno expressões que só em Viana se dizem, e repeti-las em casa para que os mais novos as mordam sem estranhar.
Rituais de bolso, de cozinha, de ouvido. Cada qual encontra os seus.
Língua, sotaque, tempero
O português de Viana tem água e granito. Tem o r aberto que não se vende ao primeiro estrangeirismo. Quem emigra decide, a cada telefonema, qual a distância que consente entre a boca e a língua. Há quem amacie o sotaque no trabalho e o endureça ao fim do dia ao falar com os pais. Há quem ensine aos filhos o plural cantado dos ranchos e o nome certo das coisas, chávena não é copo, tremoços pedem sal, francesinha é do vizinho Porto, mas o nosso caldo verde vale por dois.
Preservar a língua não é museu. É conversa, riso, erro, correção, paciência. É dizer aos miúdos que não há problema em baralhar palavras, o importante é poder falar com os avós sem tradução.
Trabalho longe, cabeça arrumada
As histórias de emigração do Minho passam por oficinas, pelo civil, por hotéis, por cozinhas quentes e turnos que não pedem licença. Há mérito nisso, e há ciência. Gerir descanso, gerir saudade, gerir dinheiro que precisa de ser guardado para a casa que se sonha comprar, para a viagem de agosto, para estudar mais tarde.
A teimosia do Norte ajuda. Levanta-se cedo, refaz-se o plano quando falha, investe-se num curso técnico que abre portas. E em dias menos bons, volta-se a olhar fotografias do rio, para lembrar que a corrente pode ser suave e pode ser forte, mas segue, sempre segue.
Chamadas, cartas, ecrãs
Durante décadas, cartas perfumadas e postais com carimbos de longe eram o fio de ligação. Hoje, uma videochamada encurta a distância de forma quase milagrosa. Vê-se a cozinha de casa, a planta no parapeito, a luz das quatro da tarde a bater na mesma parede. No grupo de família, partilham-se receitas e sapateados dos netos, e alguém atira uma piada sobre o vento teimoso no Cabedelo.
A tecnologia não substitui o abraço, mas oferece treinos de proximidade. E o treino torna o regresso mais simples, porque a cara do miúdo não cresceu só na nossa imaginação, cresceu também no ecrã, até caber inteira no abraço.
Geografia íntima
Cada emigrante tem o seu mapa privado de Viana. Pode ser um banco da Praça da República onde se esperava por amigos, uma esquina ao lado da Igreja da Misericórdia, o cheiro antigo do Museu do Traje, o ranger do elevador de Santa Luzia, o metal frio do rail da ponte numa manhã húmida. Pode ser a sombra no Campo d’Agonia, a caminhada da ribeira até ao Gil Eannes, o sal a grudar na pele depois de um mergulho na praia Norte.
Este mapa cabe numa pessoa. E essa pessoa cabe noutra cidade, desde que aprenda a respeitar o que traz consigo.
Regressos curtos, despedidas longas
Não há saída fácil do aeroporto. Sair de Sá Carneiro com bagagem de mão e olhos marejados é quase ritual. O taxista pergunta de onde se vem e a resposta sai com orgulho pequeno, de Viana, carago. Riem os dois, fecha-se a porta do carro, a cabeça começa a listar o que faltou fazer. Visitar um tio, abrir um livro na livraria ao lado da Sé, comprar um pano de linho para a mesa estrangeira.
No sentido inverso, quando se aterrissa no país de acolhimento, há um alívio honesto. A cama está onde a deixámos, a chaleira é de metal bom, o trabalho espera. Lá fora, se calhar, neve, ou um verão que não chega ao azul de Afife. O corpo aprende duas saudades: saudade de Viana e saudade da vida organizada que o estrangeiro trouxe. É possível cuidar das duas ao mesmo tempo.
Um guia breve para manter a raiz viva
- Marcar no calendário as datas que fazem ponte com Viana: as Festas d’Agonia, o aniversário dos pais, o dia em que se partiu.
- Criar uma pequena biblioteca minhota: poesia, crónicas, receitas, um álbum antigo de fotografias digitalizadas.
- Juntar-se a associações de emigrantes, ou fundar uma de Vianenses se não houver. Dançar um vira numa sala emprestada dá saúde.
- Escolher um prato para dominar e repetir nos encontros, por exemplo polvo à lagareiro com batata a murro, e partilhar a história do azeite novo.
- Manter um caderno de “primeiras vezes” no país de acolhimento, a par das “últimas vezes” em Viana, para perceber que a vida cresce nos dois lados.
- Comprar um mapa do Alto Minho e pendurá-lo na sala, ponto de conversa para visitas e lembrete silencioso.
Pequenos gestos, resultados sólidos. A raiz não pede barulho, pede constância.
Cozinha que abraça à distância
O paladar é uma ponte confiável. Um caldo verde ao fim de um dia pesado faz tanto como um discurso motivador. Um arroz de sarrabulho reúne pessoas que nunca tinham provado, e a conversa acende-se como se todos partilhassem infância no mesmo adro.
Há sabores que ficam na língua como promessas. Rojões à minhota com vinho verde fresco. Lampreia no tempo certo, para quem pode. Bolinhos de bacalhau em noites de futebol. Broa de milho a aquecer no forno, a casa a cheirar a casa. E sobremesas que contam estórias, leite-creme queimado na hora, rabanadas quando o Natal se aproxima, queijadinhas que copiam receitas antigas.
Viana viaja bem por dentro de um tacho. E a mesa, mesmo noutro país, pode ter a mesma leve inclinação daquele tempo feliz.
Tradição reinventada longe de casa
As tradições respiram quando se adaptam. Quantas vezes se vê um coração de Viana tatuado num pulso em Londres, uma saia com padrão de mordoma usada num mercado de Berlim, um colar de filigrana a brilhar em Montreal. Quem leva estas peças para o mundo não as congela, deixa-as entrar no quotidiano novo.
Há escolas de dança que ensinam um vira, há oficinas que convidam artesãos minhotos a mostrarem o ouro miúdo que a paciência cria, há restaurantes que dedicam um mês ao Minho. Cada gesto amplia o mapa cultural e dá lugar a encontros improváveis.
A diáspora vianense também cria memória. E essa memória regressa a Viana, enriquecida de outras cores e ritmos.
Estudo, ofício, futuro
Muitos partiram para trabalhar já, outros para estudar e depois decidir. Não há caminho único. Há a ambição de aprender, de abrir horizontes, de juntar ferramentas. Arquitetos que desenham pontes a pensar na ponte do Lima, enfermeiras que lembram o hospital navio Gil Eannes e sorriem à coincidência, engenheiros que olham estaleiros e recordam os de Viana.
O futuro não pede que se escolha entre origem e destino. Pede coerência, pede atenção ao que faz sentido. É possível abrir uma empresa fora e apoiar uma associação cultural em Viana. É possível viver em dois idiomas e escrever poemas mentalmente no português que se trouxe. É possível.
A cidade cabe no bolso, mas não se deixa dobrar
Viana não é só postal bonito. É vento que torce sombrinhas, é chuva que lava depressas as ruas, é inverno a saber a caldo verde, é um Museu do Traje que espelha histórias de gente que trabalhou a sério. É domingo com campainhas a tocar, é tarde de verão com Neopop a vibrar no fundo, é feira que traz peixe que ainda parece ter o mar por perto.
Quem emigrou sabe que o romantismo é um lado da moeda. O outro é a realidade do dia a dia. E entre uma coisa e outra, fica a liberdade de escolher como guardar a cidade dentro. Às vezes com rigor de cronista, trabalho feito de nomes e datas. Outras vezes com liberdade de poeta, invenção e delicadeza.
A despedida que nunca fecha
Há despedidas com lágrimas nos olhos e outras com sorriso rasgado. Há despedidas que parecem finais e não passam de intervalos. Viana, quando cabe no peito de quem partiu, não pede drama. Pede cuidado. Pede telefonemas, visitas, mãos no ombro, fotografias, receitas, histórias contadas às crianças antes de dormir.
Pede também curiosidade pelo novo sítio, porque a saudade cresce melhor quando o presente tem lugar. Pede uma vida boa, de preferência com janelas grandes, onde a luz da tarde possa desenhar no chão um retângulo que faça lembrar a luz de Santa Luzia.
E num dia qualquer, ao sair para trabalhar ou ao regressar a casa num país que já fala connosco, um vento muda, uma canção antiga toca, um aroma de maresia escondido numa esquina acorda. Nesse instante percebe-se que não houve separação, havia um fio, sempre houve um fio.
O nome desse fio é saudade. E quem o segura sabe, com serenidade, que Viana continua a falar. Em voz baixa, mas clara. Em qualquer parte do mundo.