A celebração de fé e devoção nas festas d'agonia

Quando Viana do Castelo acorda para a sua grande romaria, o Minho inteiro parece respirar ao mesmo ritmo. O mar levanta um rumor grave, as gaivotas circulam em coro, os sinos convocam. Nas ruas, penduram-se colchas nas varandas, o cheiro das sardinhas mistura-se com o das flores, e as mãos apertam terços cuja história passou de geração em geração. As Festas d’Agonia trazem esta confluência rara: a fé saída do peito dos pescadores e a devoção que reúne famílias, vizinhos e forasteiros numa celebração com carácter próprio.

A imagem de Nossa Senhora d’Agonia ocupa, no imaginário local, um lugar ao mesmo tempo próximo e elevado. É a Mãe que protege os que se fazem ao mar, que recebe ex-votos, que escuta promessas ditas a meia voz. Ao longo de vários dias, a cidade organiza-se à volta dessa presença, dando espaço ao recolhimento e à alegria, ao voto silencioso e à música que corre rua abaixo com bombos e gaitas.

É uma festa que se sente no corpo.

É também uma escola de memória e identidade.

O coração mariano de Viana do Castelo

No Santuário de Nossa Senhora da Agonia, o olhar de quem entra detém-se nos ex-votos. Centenas. Quadros com cenas de tempestade, pequenos barcos, figuras de cera em forma de perna, braço, coração. São gestos públicos de gratidão, respostas a pedidos feitos no silêncio. Falam de perigos evitados, de vidas resgatadas, de nascimentos, de curas inesperadas.

A devoção cresceu com o mar. Os pescadores, acostumados a ler o céu e a medir o temperamento das correntes, entregam a Nossa Senhora aquilo que excede a técnica e o cálculo: o regresso. Por isso, muitos fazem promessas que começam numa madrugada cinzenta e cumprem-se, meses depois, sob sol estival, com a cidade a assistir. Há quem suba a escadaria do santuário de joelhos, quem caminhe descalço no empedrado, quem ofereça a sua peça de ouro ou quem venha à procissão com o seu traje de festa para agradecer. Cada promessa conta uma vida.

Dentro da igreja, a novena que antecede os dias principais vai enchendo bancos. Rezam-se terços, entoa-se a Salve Rainha, ouvem-se cânticos que cada voz carrega à sua maneira. É uma cadência que prepara, que estabiliza a atenção no essencial. O pátio exterior, na hora do fim da novena, transforma-se num lugar de abraços e conversas baixas. O sagrado não fecha portas à convivência.

Rituais que moldam a romaria

Há um fio condutor que atravessa todas as edições. De ano para ano, a organização pode ajustar horários e percursos, mas a essência mantém-se.

Entre os momentos de maior significado espiritual, contam-se:

  • Novena e missas em honra de Nossa Senhora d’Agonia, reunindo confrarias, paróquias e grupos de cantores.
  • Procissão Solene pelas ruas da cidade, com andores decorados e milhares de fiéis.
  • Procissão ao Mar e ao Rio, em que a imagem é levada até ao cais e segue em embarcação, abençoando homens, águas e artes de pesca.
  • Vigílias de oração e atos penitenciais, onde se cumprem promessas antigas e nascem novas.
  • Bênção dos pescadores e das suas famílias, num gesto que tem a força simples do sinal da cruz e o vigor de um apelo coletivo.

Cada ritual tem a sua gramática. Os andores respiram flores e luz. As confrarias caminham a ritmo firme. Nas mãos, velas altas que os mais pequenos tentam segurar com a ajuda dos avós. No ar, o som dos Zés Pereiras corta as conversas e abre espaço ao passo ritmado dos figurantes. E, de repente, um silêncio chega, como um manto, quando o andor passa. É o instante em que cada um reza à sua maneira.

A Procissão ao Mar introduz uma mudança de cenário que faz vibrar o coração minhotas vezes. Da pedra da cidade, passa-se à madeira dos cais, ao cabedelo das vozes que gritam viva, ao movimento dos barcos alinhados com bandeiras e mastros engalanados. A fé desloca-se e adapta-se. É o gesto que faz sentido num território onde a vida dependeu sempre dessa linha azul no horizonte.

Promessas, ex-votos e o peso do ouro

Muito já se escreveu sobre o ouro no Minho. O brilho que enche o peito das mordomas não é só estética. Tem raiz em tradições de poupança familiar, em heranças que passam de mães para filhas, e também em promessas que atam a devoção a um objeto precioso. Cada peça carrega uma história, uma data, um nome gravado na memória de casa.

No santuário, o ouro encontra o seu lugar simbólico. Em ambiente de festa, surge no Desfile da Mordomia, onde centenas de mulheres apresentam o traje à vianesa, com as suas variações e riqueza de pormenor. Esse desfile é muitas vezes interpretado como um ato de afirmação cultural, mas também é, para muitas, oferta e gratidão pública.

Os ex-votos compõem um arquivo vivo da relação entre a comunidade e a sua padroeira. Entre os mais comuns encontram-se:

  • Taboletas pintadas com cenas de perigo e graça recebida
  • Réplicas de barcos, redes e anzóis miniaturizados
  • Peças de cera representando partes do corpo
  • Fotografias de família com dedicatória
  • Joias doadas, às vezes simples, às vezes monumentais

Nenhum é anónimo. Mesmo quando o nome não está escrito, há uma história que alguém sabe contar. E isso cria um laço: quem entra e observa não está num museu apenas, está num espaço tecido de vidas.

Procissão ao mar: quando a fé encontra as marés

Na manhã em que a imagem de Nossa Senhora d’Agonia desce até ao cais, há uma vibração especial na cidade. As ruas que conduzem ao rio vestem-se com tapetes de sal. Desenhos de cor intensa, ícones marianos, motivos marítimos e floralistas compõem um caminho efémero. As mãos que passaram a noite a desenhar com sal trabalham em silêncio e sorriso contido, como quem prepara a mesa antes de chegar a família inteira.

O momento da descida é emoção pura. Ao longe, apitam navios. Os pescadores, muitos de camisa branca e lenço ao pescoço, aguardam. As autoridades alinham-se. Crianças sobem aos ombros. E, de repente, a imagem surge. A cidade abre passagem. E o sal, que aguenta estático tantas horas, faz-se pó finíssimo sob os passos de fé.

No cais, os padrinhos da festa e os homens do mar asseguram a transição. A imagem sobe para a embarcação principal, engalanada, enquanto as restantes lanchas se juntam para o cortejo na água. A bênção do mar e do rio é um ato simples, mas que carrega décadas de confiança partilhada. A cada cruz traçada, há um nome em pensamento, uma memória de tempestade, uma mesa com lugar vazio que se deseja evitar.

A água devolve a fé em reflexos. E a cidade celebra em silêncio de respeito. Quem assiste sente que está a participar num modo de rezar que só ali faz total sentido.

Entre o sagrado e o festivo

As Festas d’Agonia são romaria, mas também arraial. Ninguém confunde. À volta do núcleo religioso, instalam-se palcos, roulottes de fumeiro e doçaria, tasquinhas, vendedores de balões e de manjericos. Desfilam gigantones e cabeçudos, dançam-se viras, soam concertinas até tarde. É um convívio sem fronteiras, onde se encontra o colega de escola e o emigrante que regressou por uns dias.

O segredo está no equilíbrio. Os horários acomodam missas e procissões sem atropelos, os artistas sobem ao palco depois dos momentos de oração, e a cidade aprende a passar de um ambiente de silêncio para a vibração do arraial sem se perder. É uma coreografia coletiva, aperfeiçoada ao longo de décadas.

Um olhar atentamente estruturado ajuda a perceber como se ligam os dois registos:

Momento Cariz Sinal visível Onde Significado vivido
Novena no santuário Religioso Terço, canto litúrgico Igreja Preparação interior, pedidos e agradecimentos
Procissão Solene Religioso Andores, velas, confrarias Ruas Voto público, memória coletiva
Procissão ao Mar e ao Rio Religioso Embarcações engalanadas Cais e estuário Bênção e proteção para comunidades do mar
Desfile da Mordomia Popular com raiz devocional Traje à vianesa, ouro Avenida ou praça Gratidão, herança familiar, identidade local
Tapetes de sal Popular com compasso de fé Desenhos efémeros em sal colorido Ruas para a procissão Beleza partilhada, caminho de oração
Arraial minhoto Popular Música, danças, comes e bebes Largo e ruas Encontro, alegria comunitária

Este quadro não pretende enclausurar nada. Serve apenas para mostrar a ponte que está montada todos os anos, com trânsito fluido em ambos os sentidos.

A preparação: meses de trabalho invisível

Para que este mosaico aconteça, há uma logística paciente. Meses antes, a comissão de festas reúne-se, trata de licenças, agenda ensaios, convida bandas, coordena com a irmandade. Nos bairros, são as associações que pintam arcos, que recuperam banners, que inventam novas formas de acolhimento.

As mordomas estudam pormenores de traje, confirmam a integridade das peças, pedem a uma tia ou a uma avó aquele coração de filigrana que faltava. O cabelo, as meias, o lenço, o avental, cada elemento escolhido tem regras, mas também tem margem para dizer quem se é. Na hora de sair, tudo se alinha com uma pontaria antiga.

Os tapetes de sal exigem equipas generosas. É preciso tingir sal, secá-lo, projetar a peça, desenhar moldes, montar uma linha de trabalho que avança ao ritmo da noite. No amanhecer, o desenho surge completo como um presente escondido que se revela.

Os ranchos folclóricos afinam as modas. Os tocadores de gaita-de-fole e os tocadores de bombo treinam a resistência para longos desfiles. Os pescadores, no cais, preparam as embarcações, testam motores, experimentam bandeiras. A cidade inteira entra em ensaio, muitas vezes sem calendário escrito.

Uma herança que se aprende de mãos dadas

As Festas d’Agonia ensinam. A fé aprende-se ali, com um gesto simples: uma avó leva a neta à igreja, um pai explica porque acende uma vela, um tio mostra como segurar o andor sem tremer. As crianças sentem a solenidade e, ao mesmo tempo, acham graça aos gigantones que passam a correr. Tudo cabe na memória.

Os professores e catequistas aproveitam o contexto para explicar tradições, símbolos, histórias locais. Fala-se dos trajes, das filigranas, do motivo das promessas, do cuidado com os tapetes de sal. Os meninos desenham a procissão na escola e, ao voltar a casa, pedem para ir ver a montagem dos arcos. É um conhecimento incorporado, passado entre pessoas.

E há um cuidado especial com a transmissão do que não se vê. O respeito. A noção de que uma procissão não é um desfile qualquer e que, no silêncio, cabem muitas vozes.

Viver a festa com respeito

Quem visita Viana durante as Festas d’Agonia rapidamente percebe que a cidade acolhe. Para que o acolhimento resulte e a dimensão espiritual não se perca, algumas atitudes fazem a diferença:

  • Respeitar os espaços de oração, evitando conversas e telemóveis em modo ruidoso dentro do santuário
  • Durante as procissões, permitir a passagem dos andores, evitando atravessar o cortejo
  • Não pisar os tapetes de sal antes da procissão e manter distância suficiente para não destruir bordas sensíveis
  • Pedir autorização antes de fotografar alguém em traje ou em ato de promessa
  • Preferir roupa adequada nos momentos litúrgicos
  • Ajudar a manter as ruas limpas, usando os pontos de recolha disponíveis
  • Dar prioridade a idosos e crianças nas zonas de maior aglomeração

Estas regras não fecham a festa; garantem que todos podem participar de forma serena.

Um palco minhoto aberto ao país e à diáspora

Viana recebe portugueses de todo o território e vianenses espalhados pelo mundo. Muitos planeiam férias para agosto, para coincidir com a romaria. A cidade enche-se de sotaques, de reencontros, de memórias trazidas na bagagem. Há quem venha do Canadá, da França, do Luxemburgo, quem atravesse o Atlântico só para caminhar atrás do andor, para sentir o toque da água no cais, para agradecer saúde e trabalho.

O turismo cultural reconhece aqui uma experiência com marca própria. A identidade minhota, com a sua alegria temperada pela fé, afirma-se num evento que não se encerra numa moldura folclórica. O que se mostra na rua é vida vivida, não encenação. Talvez por isso, quem participa sente que leva consigo mais do que fotografias.

A cidade tira partido desse impulso para fortalecer o comércio local, promover ofícios tradicionais e valorizar percursos patrimoniais. Bordadeiras, filigraneiros, carpinteiros navais, cozinheiras de cozinha minhota, todos encontram ocasiões para mostrar o que sabem fazer. O resultado tem sabor de casa.

Um roteiro de fé ao ritmo de Viana

Cada pessoa encontra o seu compasso. Ainda assim, um esquema simples ajuda a quem quer privilegiar a dimensão devocional, lembrando que o programa pode variar em cada ano:

Dia Manhã Tarde Noite
Sexta Visita ao santuário, oração silenciosa, novena Desfile da Mordomia, tempo para os ex-votos Terço cantado, arraial com música tradicional
Sábado Missa, passeio pelos tapetes de sal já em preparação Procissão Solene pelas ruas Concerto, encontro de ranchos
Domingo Procissão ao Mar e ao Rio, bênção das embarcações Regresso ao santuário, visita de gratidão Fogo de artifício, convívio com amigos e família

Entre estes momentos, há sempre espaço para uma ida à Ribeira, uma conversa com pescadores, a compra de um lenço pintado, ou um doce conventual numa esplanada. A fé precisa de tempo, e a festa dá-lho.

O que fica quando o último foguete apaga

As Festas d’Agonia deixam marcas. Quem participou recorda o brilho dos olhos de quem levava o andor, a mão que pousou no ombro no meio da multidão, o silêncio construído por milhares de pessoas ao mesmo tempo. Fica a memória dos tapetes de sal desfeitos debaixo de passos cheios de sentido. Fica o eco dos bombos a ritmar a noite e o mar a responder com a sua cadência lenta.

Na vida de quem faz promessas, a festa não se fecha com o programa. É um intervalo entre dois gestos: aquele em que se pede e aquele em que se volta a agradecer. No comércio, nos cafés, nas paragens de autocarro, continuam as conversas sobre o que se viveu e sobre o que se espera. E o santuário, de portas abertas, recebe a cidade em dias comuns, com a mesma paciência.

Talvez seja isso o que explica a força desta romaria. Não depende apenas de um calendário. É feita de um tecido amarrado à confiança de um povo que aprendeu a ler o céu, a escutar o mar e a guardar no coração uma presença que chama pelo nome. Quando as ruas voltam ao ritmo habitual, a fé continua lá, discreta, pronta a reacender com o primeiro toque de sino no próximo agosto.

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