História e origem da romaria d’agonia

O mês de agosto aproxima-se e Viana do Castelo muda de ritmo. As ruas enchem-se de colchas coloridas às janelas, o som dos bombos e das gaitas de foles marca o compasso, o cheiro a sardinha assada cruza-se com o perfume da flor que enfeita o andor. O estuário do Lima fica coberto de barcos engalanados, os sinos do santuário soam sem descanso e, por momentos, todo o Alto Minho converge para um mesmo lugar de memória e fé. É nesse cruzamento de mar e terra, de devoção e festa, que a romaria d’Agonia criou uma identidade singular.

O que começou como um voto humilde de gente do mar tornou-se um dos grandes cartazes do calendário cultural português. Não se trata apenas de um evento, mas de um ritual anual que junta mantos de veludo, ouro rendilhado e sal colorido com a dureza da barra e a esperança de quem partia para a faina. Perceber a sua origem ajuda a ler os seus ritos, e essa leitura ganha novos tons quando a colocamos no tempo certo, ao lado das transformações de Viana, do Minho e do país.

A história é mais densa do que aparenta à primeira vista. E continua a escrever-se.

Como nasceu a devoção à Senhora d’Agonia

A invocação mariana a Nossa Senhora da Agonia surge em Viana associada à angústia dos momentos extremos. Agonia não é apenas dor, é combate interior, o limite entre o receio e a confiança. Para as comunidades marítimas, esse limite passava muitas vezes pela travessia da barra, pelas noites de tempestade e pelo regresso que nem sempre acontecia.

A tradição aponta o século XVIII como período decisivo. É quando se fixa a devoção, quando se ergue o santuário no alto suave que guarda o porto e quando a festa ganha data. A paisagem ajuda: diante, o estuário com o seu brilho móvel; a norte e a sul, a costa aberta; atrás, a malha urbana que crescia com o comércio transatlântico, o vinho, o linho e a construção naval. Uma capela torna-se santuário, a imagem ganha contornos próprios e a romaria nasce da necessidade de agradecer e pedir proteção.

Os pescadores e mareantes, habituados a promessas, foram provavelmente os primeiros a organizar procissões simples, com velas, rezas e pequenos ex-votos. A devoção fixou-se porque respondia a uma experiência concreta, a vida no limite, e ao mesmo tempo oferecia um lugar de amparo, uma casa para voltar.

Viana do Castelo, o Lima e o Atlântico

Qualquer relato sobre a origem da romaria deve olhar para o território. Viana é uma cidade moldada pelo mar. O rio Lima, com a sua barra caprichosa, sempre exigiu técnica e coragem. A economia local dependia do porto, da pesca e das ligações com o interior minhoto, produtor de cereais, vinho verde e têxteis. As ruas inclinadas e as praças iam recebendo marinheiros, mercadores, artífices, lavradeiras, e a vida pública organizava-se em torno de irmandades, confrarias e festas do calendário religioso.

O culto à Senhora d’Agonia encaixa nesse mosaico. A sua imagem, colocada num santuário que olha o mar, legitimava uma relação direta entre o sagrado e o trabalho diário dos devotos. Não é um culto de longe, é uma devoção que lê o horizonte e o tempo atmosférico. Quando o nevoeiro entrava, quando o vento soprava de sueste, a vela acesa e a oração à Senhora tinham um sentido tão prático quanto espiritual.

É também esta geografia que explica a passagem do voto individual à celebração comunitária. Um porto vive de redes, não apenas as de pesca. A romaria acendeu essas redes e ampliou-as.

Do voto dos mareantes à festa do povo

Ao longo do século XIX, a festa da Senhora d’Agonia ganha dimensões novas. Há relatos de procissões já bem compostas, com pendões, andores e a participação de várias profissões. Junta-se a feira, chegam os vendedores ambulantes, organizam-se arraiais e bailes. A cidade recebe romeiros de concelhos vizinhos, que aproveitam a data para trocar produtos, rever familiares e cumprir promessas.

O calendário ajuda. Agosto é tempo de colheitas e de férias na faina de alto mar para parte da comunidade. Os dias são longos, o mar por norma está mais calmo, os emigrantes regressam, e Viana torna-se palco de reencontros. O núcleo duro da festa mantém-se religioso, mas cresce uma camada popular, festiva, que dá cor, som e movimento à cidade.

Nesta passagem, a romaria guarda duas fidelidades. Uma, aos ritos mais antigos, a missa solene, a procissão, as velas, os ex-votos. Outra, à alegria de rua, aos bombos e gigantones, às barraquinhas, ao fogo de artifício. Ambas se alimentam e dialogam.

As datas que moldaram a tradição

Nem todas as marcas temporais estão escritas em pedra, e algumas datas variam em função das fontes. Ainda assim, há etapas reconhecíveis que ajudam a ler o crescimento da romaria.

Período Marco principal Notas
Século XVIII Fixação do culto e construção do santuário A devoção ganha lugar próprio e identidade
Século XIX Procissões estruturadas e feira popular Consolidação do caráter comunitário
Início do século XX Reforço do culto e do santuário A imagem reúne grande devoção
Meados do século XX Codificação de cortejos e foco no traje e ouro Consolidação do desfile da mordomia
Segunda metade do séc. XX Procissão ao mar e ao rio ganha centralidade A bênção das embarcações torna-se imagem forte
Século XXI Patrimonialização e internacionalização Turismo, media e programação cultural densa

A tabela diz pouco sem os pormenores. O que importa é perceber como a associação à vida marítima nunca se perdeu e como a cidade soube integrar novas linguagens, mantendo o coração da festa no lugar certo.

A procissão ao mar e os rituais de agosto

Entre os muitos ritos, há um que concentrou a atenção de Portugal inteiro. A procissão ao mar leva a imagem da Senhora até aos cais, onde embarca para abençoar o estuário, a barra, as artes de pesca e todos os que vivem do oceano. Os barcos, ornamentados com flores, bandeiras e colchas, formam um cortejo fluvial, as sirenes das embarcações ecoam e os pescadores erguem as mãos em sinal de saudação.

Antes desta saída, a cidade prepara caminho. Os tapetes de sal, feitos durante a noite por equipas que dominam o gesto, transformam ruas em telas efémeras. As cores são intensas, os desenhos misturam motivos marianos, marítimos e elementos minhotos. Quem passa apressa o passo para não os pisar.

A procissão solene, que percorre a malha urbana, conta com irmandades, clero, escuteiros, autoridades, confrarias de ofícios. O andor principal vai acompanhado por promesseiros, alguns descalços, carregando maquetas de barcos, redes, bóias, ou corações de filigrana com gravações de graças recebidas. A fé aqui é física, cabe nas mãos e nos ombros.

Outros ritos compõem o quadro:

  • Missa campal no adro do santuário, com canto coral e participação maciça
  • Bênção dos pescadores e das embarcações no estuário
  • Leilões de oferendas, muitas vezes ligados ao mar e à terra
  • Velas e ex-votos colocados no interior do santuário, formando uma memória coletiva

Tudo isto corre em paralelo com arraiais que se prolongam pela noite. O fogo de artifício desenha no céu coreografias sobre o Lima e dá uma dimensão luminosa à devoção.

Trajes, ouro e mordomias

Nenhuma imagem fala tanto de Viana como o traje. A romaria é a ocasião em que o traje à vianesa e os trajes do Minho saem à rua em força. Tecido grosso, saias rodadas, aventais bordados, lenços de vivos contrastes, meias trabalhadas, sapatos pretos bem engraxados. O ouro em camadas, feito de laços, grilhões, correntes, medalhas e os famosos corações.

O coração de Viana, em filigrana, tornou-se símbolo. Não é apenas ornamento. Tem densidade afetiva, foi adquirido pouco a pouco ao longo de uma vida, representa momentos chave da família, é legado e promessa. No desfile da mordomia, centenas de mulheres organizadas pelas freguesias desfilam com os trajes e o ouro, cada uma numa combinação que segue regras de gosto e tradição, mas sempre com um toque pessoal.

Há várias categorias de traje, cada uma com ocasião própria:

  • Lavradeira de trabalho
  • Lavradeira de domingar
  • Mordoma
  • Noiva
  • Meia-luto e luto
  • Trajes de outros concelhos do Minho, com variações de cor e bordado

A mordomia não é apenas passar à frente com vestidos e ouro. É uma estrutura de organização, de voluntariado e responsabilidade, que durante meses prepara o calendário, angaria fundos, articula com a paróquia e com a autarquia e cuida da continuidade do ritual.

Gigantones, cabeçudos, bombos e rusgas

A festa cresce para lá do santuário. Os gigantones e cabeçudos, com pernas longas e caras desmesuradas, atravessam praças e ruelas, abrindo alas com passos cadenciados. O barulho grave dos bombos marca uma cadência contagiante. Há rusgas que cruzam a cidade madrugada dentro, com concertinas e cantorias, numa alegria que se renova ano após ano.

Os tapetes de sal, já referidos, conferem uma estética efémera de alto impacto. A técnica passa de geração em geração, a paleta muda de rua para rua e o desenho tem mão de artista e de vizinhança. São obras nascidas no silêncio da noite e apagadas com o movimento da romaria, o que lhes dá um encanto particular.

Entre as feiras, a do artesanato ganhou reputação. Filigrana, bordados, lenços, peças de madeira, cerâmica, cestaria, tudo convive num catálogo vivo da cultura material minhota. Este contacto com o fazer manual tem uma dimensão económica, mas é também escola e palco de transmissão.

O papel das instituições e o impulso do século XX

No século XX, a romaria ganha visibilidade nacional. O associativismo local, paroquial e municipal, e o contexto cultural do país reforçam o gosto pelo que é dito popular e regional. Em Viana, isso traduz-se em cortejos histórico-etnográficos, na organização cuidada do calendário festivo, em cartazes, programas e na definição de eixos que permanecem.

O traje e o ouro, por exemplo, passam a ter um momento alto próprio, quase museográfico, sem perder o vínculo religioso. A procissão ao mar confirma-se como imagem de marca. Os eventos paralelos multiplicam-se: concursos de montras, exposições, encontros de tocadores, provas gastronómicas. A comunicação cresce, a cidade recebe mais visitantes, e a romaria transforma-se no cartão de visita mais forte de Viana do Castelo.

Há aqui uma tensão saudável entre património vivo e espetáculo. A romaria aprendeu a abrir portas sem perder a casa.

O santuário e o lugar da promessa

Voltemos ao santuário, porque ali está o núcleo. A igreja, visível de muitos pontos da cidade, concentra camadas de devoção. Os ex-votos que forram paredes e salas contam naufrágios evitados, doenças ultrapassadas, regresso de emigração, nascimento esperado. São pintura naif, fotografias antigas, maquetes de barcos, muletas deixadas para trás, velas com nomes e datas.

A arquitetura mistura elementos de épocas diferentes, com a pedra a acolher retábulos, azulejos e talha que dialogam com a luz atlântica. O adro é terra de encontros, e o interior, lugar de silêncio povoado. Quem chega fora de agosto encontra sempre sinal de romaria. Há promessas que não conhecem calendário.

Economia, cidade e impacto social

Uma festa desta dimensão tem efeitos que se medem em muitos campos. O impacto económico é evidente. Hotéis, restaurantes, comércio local, artesãos, pescadores com passeios no estuário, todos beneficiam da concentração de pessoas. A cidade ensaia formas de acolhimento que valorizam o melhor de si, desde a gastronomia às visitas guiadas ao centro histórico e ao navio Gil Eannes.

No plano social, a romaria reforça redes de vizinhança, cria rotinas de colaboração e dá a muitos um espaço de pertença. Há idosos que deixam saberes de costura, bordado e arranjo de traje a jovens mordomas; há equipas que ensinam a fazer tapetes de sal; há músicos novos que aprendem modas antigas. O legado faz-se com as mãos e com a memória.

Autenticidade, salvaguarda e futuro próximo

Com a popularidade vem um desafio recorrente: manter o núcleo religioso e comunitário onde ele sempre esteve, no centro. A salvaguarda do património imaterial pede escolhas. Programar a festa com respeito pelos ritos, cuidar do santuário e do seu espólio, valorizar a artesania sem a transformar numa caricatura, proteger os trajetos das procissões, dar atenção ao impacto ambiental dos grandes eventos.

Há passos já visíveis:

  • Planos de mobilidade que reduzem o tráfego automóvel em zonas sensíveis
  • Horários e mapas claros para o movimento de cortejos, com sinalética acessível
  • Projetos educativos nas escolas sobre traje, filigrana e música tradicional
  • Incentivo a materiais sustentáveis nos tapetes e na decoração de ruas
  • Campanhas de recolha e reciclagem durante os dias da romaria

Tudo isto serve uma ideia central. A romaria vive do encontro entre fé e cidade. O que se pede aos organizadores, às instituições e aos romeiros é que façam desse encontro uma casa para todos.

O que fica quando a festa acaba

Quando a última peça de fogo termina e os últimos acordes de concertina se afastam, Viana regressa à cadência habitual. No santuário, as velas continuam a arder. As mordomas guardam o traje, o ouro volta ao cofre, os tapetes de sal desaparecem com água e vassoura. Mas fica mais do que o rasto de uma grande festa.

Fica a gramática de uma comunidade que aprendeu a dizer fé em linguagem minhota. Fica o cuidado com aquilo que se recebe dos anteriores e que se quer passar aos seguintes. Fica a paisagem, porque o santuário, o rio e o mar continuam no mesmo sítio, testemunhas silenciosas de uma história que ainda tem capítulos por escrever.

E fica uma certeza discreta. No próximo agosto, quando os sinos tocarem, a cidade volta a encher-se. Com promessas, ouro e sal. Com rostos de toda a parte e, no centro, a Senhora d’Agonia que deu origem a tudo.

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