Importância e papel das mordomas nas festas de Viana

A imagem das mordomas nas Festas de Viana é uma síntese rara de tradição, estética e organização comunitária. Ao vestir o traje, ao carregar o ouro de família e ao representar a sua freguesia, cada mordoma assume um lugar que é, ao mesmo tempo, público e íntimo. Não se trata apenas de desfilar. É um exercício de representação cultural, um compromisso com a fé e um trabalho concreto que envolve meses de preparação.

A vitalidade desta figura ajuda a entender por que motivo a Romaria da Senhora d’Agonia resiste e ganha fôlego ano após ano. Numa cidade que se reinventa sem quebrar o fio da memória, as mordomas são um dos pilares que ligam pessoas, ofícios e rituais.

O que significa ser mordoma hoje

Ser mordoma em Viana do Castelo é aceitar uma responsabilidade perante a comunidade. O papel assume faces diferentes, consoante a freguesia e as tradições locais, mas passa sempre por dois eixos: representar e servir.

  • Representar a freguesia no Desfile da Mordomia e em outros momentos públicos das festas.
  • Servir na organização, ajudando na angariação de fundos, na logística das cerimónias e na dinamização de atividades ao longo do ano.

A mordoma não é uma figura decorativa. É uma agente cultural. A sua presença toca o religioso, o cívico e o económico. E, por detrás das fitas e dos cordões de ouro, há uma rede de decisões, reuniões, ensaios e tarefas concretas que exige rigor e sentido de equipa.

Raízes históricas da mordomia

A palavra remete para as antigas mordomias paroquiais, zeladoras de património, esmolas e celebrações. No Minho, a organização das festas dependia destas estruturas, que mobilizavam homens e mulheres em tarefas diferentes, mas com o mesmo objetivo: dar corpo às romarias.

Com o tempo, a mordoma ganhou contornos mais visíveis. Tornou-se rosto, traje e emblema. Em Viana, esse processo acentuou-se na primeira metade do século XX, quando o traje à vianesa e a ourivesaria local passaram a ser apresentados como marca identitária. As mordomas afirmaram-se então como guardiãs de um repertório simbólico: rendas, bordados, joias, gestos, cânticos, passos.

O traje, os símbolos e o ouro

A leitura do traje é um exercício fascinante. Há códigos, paletas, texturas e usos que passam de geração em geração. E há, claro, o ouro, camada após camada, a criar uma narrativa visual onde se cruzam devoção, herança e habilidade de ourives.

  • Lenço, colete, saia e avental compõem a base, com variações de fabrico e ornamentação.
  • A algibeira é mais do que acessório. Guarda objetos de uso e histórias de família.
  • O ouro é colocado com critério: fios mais curtos junto ao pescoço, crescendo em comprimento e em densidade. A sequência não é casual.

A ourivesaria de Viana tem peças que se tornaram ícones: o Coração de Viana, as arrecadas à rainha, as contas de Viana, alminhas, crucifixos, detentes. Há filigrana delicada e há castelos mais robustos. Em cada combinação há um equilíbrio entre estética e significado.

Principais variantes do traje

Traje Paleta e tecidos Peças-chave Quando se usa Ouro típico
À mordoma Pretos e tons escuros, lã e seda Lenço de seda, colete bordado, saia lisa, algibeira trabalhada Desfile da Mordomia e atos solenes Camadas abundantes, Coração de Viana, arrecadas
Lavradeira Vermelho, azul ou verde, lã e linho Avental bordado, saia aos folhos, colete com nervuras Festas e danças, contextos performativos Fios médios, cruzes, contas
Noiva Predomínio do branco e marfim Véu e lenço finos, rendas, bordado minucioso Casamentos e registos memoriais Conjunto mais delicado, menos camadas
Domingar Cores moderadas, linho e algodão Avental discreto, lenço simples, pouca ornamentação Missas e saídas de domingo Adornos contidos

Não existe uniformidade absoluta. Cada freguesia tem a sua gramática. É justamente essa pluralidade que dá ao desfile uma riqueza visual inconfundível.

Desfile da Mordomia: ritual e espetáculo partilhado

O Desfile da Mordomia é um dos pontos altos das festas. Centenas e, em alguns anos, milhares de mulheres ocupam as ruas com elegância coreografada. O som dos Zés Pereiras abre caminho, os gigantones saudam, a cidade pára.

O público vê cor e brilho. As mordomas sentem o peso do ouro, o compasso dos passos, a responsabilidade de não falhar na formação e no ritmo. Há protocolos: alinhamentos por freguesias, ordens de entrada, momentos de paragem, sinais discretos de coordenação.

A dimensão comunicativa é enorme. Fotógrafos, canais de televisão, visitantes de várias partes do país e do estrangeiro partilham imagens que projetam Viana. O desfile é uma montra, mas é também um rito interno, com códigos só compreendidos por quem o vive de dentro.

Funções ao longo das festas

O papel da mordoma não se esgota no desfile. Ao longo dos dias de romaria, a sua presença estende-se a várias frentes.

  • Participação nas cerimónias religiosas, incluindo missa e procissões.
  • Acompanhamento de iniciativas da Comissão de Festas e das paróquias.
  • Apoio a visitantes, orientação de grupos e acolhimento de convidados.
  • Presença em momentos protocolares com entidades locais.

Em Viana, destaca-se a Procissão ao Mar, momento emblemático de ligação entre fé e trabalho. A cidade presta homenagem à gente do mar, e muitas mordomas marcam presença nas margens, reforçando essa ponte entre devoção e ofício.

Economia e ofícios em redor das mordomas

Há um ecossistema inteiro a ganhar vida com as mordomas. Não é apenas durante a semana de festa. O trabalho distribui-se ao longo do ano.

  • Costureiras e bordadeiras recebem encomendas, ajustam, preservam peças antigas.
  • Ourives e casas de joias restauram, avaliam, certificam e, em alguns casos, emprestam peças.
  • Cabeleireiras e maquilhadoras estudam estilos que respeitam o protocolo e favorecem o conjunto.
  • Fotógrafos, guias e produtores de conteúdos promovem registos e roteiros.
  • Restaurantes, alojamentos e comércio local beneficiam do aumento de visitantes.

Esta rede funciona melhor quando há mais do que transação. Quando se cria relação. As mordomas ajudam a sustentar um circuito que valoriza mão de obra qualificada, técnica apurada e respeito por materiais.

Liderança feminina e vínculo comunitário

As mordomas representam uma liderança que não pede licença para existir. Ocupam o centro da rua e a primeira fila dos rituais, sem perder a ligação à família e à paróquia. Isto tem impacto na autoestima coletiva e na forma como a cidade se vê a si própria.

Vê-se também no trabalho silencioso que muitas lideram: angariações, ensaios, visitas às oficinas, reuniões com a comissão de festas, partilha de saberes com as mais novas. O resultado está no desfile, mas a influência espalha-se por todo o calendário.

Em bairros e aldeias do concelho, a escolha de uma mordoma é assunto sério. Requer disponibilidade, tacto e capacidade de mobilizar. No final, a comunidade reconhece esse empenho e devolve em apoio.

Bastidores: como se prepara uma mordoma

A preparação começa muitos meses antes. Cada detalhe conta e nada é deixado ao acaso.

Checklist típica:

  • Definição do traje e levantamento do estado das peças.
  • Marcação de provas de costura e de ajustes.
  • Inventário do ouro disponível na família e eventual pedido de empréstimos.
  • Ensaios de desfile, treino de postura e de andamento em grupo.
  • Planeamento de cabelo e maquilhagem, compatíveis com o lenço e os acessórios.
  • Revisão de calçado, meias e outros elementos que garantem conforto e segurança.
  • Organização de transporte, horários e apoio logístico no dia.

Este processo gera partilha entre gerações. Avós e mães transmitem truques, desde a forma de atar o lenço ao cuidado com a filigrana. Muitas mulheres guardam cadernos com fotos, notas de uso, contactos de artesãos. É um património vivo.

Protocolo do ouro e critérios de autenticidade

O ouro é o elemento que mais fascina quem vê de fora. Para quem veste, é também responsabilidade. Há regras informais, aprendidas no convívio.

  • Combinar espessuras e comprimentos, criando um desenho harmonioso.
  • Garantir que cada peça está segura, sem pressão excessiva sobre o pescoço.
  • Evitar misturas que desrespeitem a gramática da ourivesaria local.
  • Cuidar do brilho sem recorrer a soluções agressivas.

A autenticidade importa. As peças com história têm marcas do tempo que não se apagam. Ao lado delas, surgem criações contemporâneas que respeitam técnicas tradicionais. As mordomas, em diálogo com ourives, têm sabido manter este equilíbrio.

Segurança, seguros e logística

O peso do ouro é real e o valor também. Isto pede medidas concretas.

  • Transporte discreto, com apoio familiar ou da freguesia.
  • Seguros temporários para peças de maior valor.
  • Pontos de apoio nas imediações dos eventos para vestir e retirar joias.
  • Coordenação com autoridades locais em horários de maior afluência.

A segurança física das mordomas é igualmente relevante. Hidratação, pausas, calçado adequado e controlo da fadiga fazem diferença. Um desfile em dia de calor exige prudência. O objetivo é que o brilho não ofusque o cuidado com a saúde.

Museus, arquivos e a memória em construção

Viana do Castelo tem investido na preservação do seu acervo têxtil e joalheiro. O Museu do Traje é referência, mas a memória vive também em arquivos paroquiais, coleções privadas e registos familiares.

  • Digitalização de fotografias antigas para comparar usos e formas de vestir.
  • Recolha de testemunhos orais de bordadeiras, rendilheiras e mordomas veteranas.
  • Estudo de padrões de bordado e de variações regionais no corte e nos materiais.

Cada mordoma que documenta a sua participação acrescenta uma linha a esta história. A cidade ganha um banco de conhecimento que alimenta novas gerações e sustenta a credibilidade das festas.

Educação, oficinas e programas para jovens

A continuidade depende da formação. Há escolas e associações que promovem oficinas de bordado, iniciação à filigrana e estudos de etnografia local. Quando as mais novas experimentam o traje em contexto pedagógico, a ligação deixa de ser apenas visual.

Um programa simples pode incluir:

  • Visita a uma ourivesaria com demonstração de filigrana.
  • Sessão sobre os tipos de traje e os seus códigos.
  • Oficina de amarração do lenço e de colocação das joias.
  • Ensaio com acompanhamento musical para acertar o passo.

O resultado é visível no brilho nos olhos e na confiança com que entram na rua. A cultura material ganha corpo em gestos que se aprendem com a prática.

Turismo cultural e imagem de Viana

As mordomas projetam Viana para além das fronteiras do concelho. As imagens circulam, os visitantes chegam, e muitos planeiam a agenda para ver o desfile. Este fluxo traz receitas e reputação, mas levanta também perguntas sensíveis: como acolher sem descaracterizar, como explicar sem simplificar demasiado.

Soluções que têm funcionado:

  • Mediação cultural em vários idiomas, com guias formados.
  • Sinalética que respeita percursos e evita pressões sobre zonas de maior densidade.
  • Horários de visita a museus e exposições ajustados à agenda das festas.
  • Venda responsável de réplicas e materiais informativos de qualidade.

O turismo que respeita e aprende é o que mais contribui. A mordoma, como imagem da cidade, ganha quando o visitante entende que está a ver mais do que um desfile bonito. Está a ver uma comunidade a organizar-se em torno de valores, fé e trabalho.

Sustentabilidade e responsabilidade social

Há preocupações legítimas com impacto ambiental e social. O cuidado começa nas escolhas de materiais e estende-se ao modo como se organiza cada atividade.

  • Valorização de fibras naturais e técnicas de produção de baixa intensidade.
  • Recuperação e reutilização de peças antigas, com restauro qualificado.
  • Logística de proximidade para reduzir deslocações desnecessárias.
  • Parcerias com escolas e associações para ampliar o acesso ao traje e ao conhecimento.

Outro ponto essencial é a inclusão. Viana é hoje um território com comunidades emigrantes e imigrantes. Quando uma jovem de uma família recém-chegada veste o traje e marcha com a sua freguesia, ganha-se todos. A festa torna-se espelho fiel da cidade real.

Comunicação digital sem perder o norte

As redes sociais aproximaram a Romaria de públicos novos. As mordomas tornaram-se protagonistas de conteúdos partilhados por milhares de pessoas. Esta exposição é oportunidade e desafio.

Boas práticas:

  • Créditos claros a costureiras, bordadeiras, ourives e fotógrafos.
  • Informação correta sobre o traje e as peças, evitando confusões.
  • Consentimento para retratos de perto e para uso comercial de imagens.
  • Curadoria por parte de instituições locais, com calendários e glossários.

Quando a comunicação é cuidada, a imagem pública reforça a qualidade do trabalho interno. E a cidade cresce em reputação sem perder rigor.

O papel da mordoma no tecido institucional

Comissões de festas, juntas de freguesia, paróquias, escolas e associações culturais formam um mosaico organizativo. As mordomas circulam entre estas instâncias com naturalidade, fazendo pontes.

  • Participam em reuniões e desenham soluções para problemas muito concretos.
  • Identificam necessidades, como restauros urgentes ou apoio a famílias.
  • Levam a voz da freguesia para a comissão central e devolvem informação atualizada.

Esta circulação põe a cultura em diálogo com a administração local. E dá às decisões uma ancoragem em práticas e saberes que a cidade reconhece.

Preparar o amanhã mantendo a fidelidade ao ontem

Há espaço para inovação responsável. Não se trata de mudar por mudar, mas de responder a necessidades reais sem quebrar o fio que sustenta o sentido da festa.

  • Documentar processos e criar guias de boas práticas para novas mordomas.
  • Promover bolsas para apoiar custos de traje e ouro em casos de menor capacidade económica.
  • Incentivar a pesquisa académica que ajude a clarificar origens e variações do traje.
  • Estimular residências de artesãos, ligando oficinas a escolas e museus.

A fidelidade a uma tradição não se mede pela rigidez, mas pela capacidade de continuar verdadeira em tempos diferentes. Em Viana, as mordomas mostram que é possível.

Um legado que se vê e que se ouve

Quando o tambor marca o passo e os cordões de ouro brilham à luz da tarde, percebe-se que a linguagem das mordomas vai além do visual. Há um som, um compasso, um respirar em conjunto que dá unidade ao desfile.

  • O momento de vestir é um ritual doméstico feito em silêncio e risos.
  • O encontro no ponto de partida é um misto de nervos e cumplicidade.
  • O primeiro olhar do público renova a energia e apaga as horas de preparação.

Ao final do dia, cada mordoma volta a casa mais rica de histórias. Guardará o lenço e as contas no sítio de sempre, sabedora de que a cidade também as guarda, como se guarda o essencial. E, quando o calendário virar, recomeça o trabalho discreto que faz das festas muito mais do que uma semana de agosto. É a vida a acontecer com raízes, rosto e voz.

Back to blog