Tradições de concertinas e folclore nas festas d’agonia

As ruas de Viana do Castelo enchem-se de passos firmes, pregões e gargalhadas quando a Senhora d’Agonia chama o povo. A melodia que atravessa tudo isso tem um timbre muito próprio: é o som vivo da concertina, a puxar viras e chulas, a agitar lembranças que se dançam. O folclore minhoto, vestido de cores e ouro, renova-se a cada agosto, numa romaria onde tradição e presente caminham juntos.

A música não é só pano de fundo. É a batuta invisível que organiza as rodas, marca o compasso aos ranchos, convoca as vozes para a saia rodada, para a malha do fandango. E quando a concertina respira, respira a cidade inteira.

A concertina como coração sonoro do Minho

A concertina portuguesa, diatónica e de botões, tem a peculiaridade de dar duas vozes com um só fole: uma harmonia simples, mas com carácter e nervo. No Minho, ela ganhou língua própria, com floreios e balanço que levantam qualquer terreiro.

Os modelos mais usados trazem duas filas e 8 ou 12 baixos. As afinações variam, com Sol Dó e Fá Sib entre as mais comuns, permitindo encaixar modas tradicionais e acomodar vozes distintas. O efeito é uma paleta sonora suficiente para sustentar um rancho inteiro, do arranque das chulas à cadência dos malhões.

Há técnica, claro, mas também há instinto. O puxar e o fechar do fole dita a frase musical, realça o balanço do passo, molda o crescendo da roda. No Minho, muitos tocadores aprendem a ouvir e a responder aos pés, não apenas ao metrónomo. Esse diálogo com o chão distingue a praxis minhota.

Danças que acendem a festa

Raramente há silêncio nos largos. O que predomina são ciclos de danças que o povo conhece de cor, ainda que cada rancho tenha variações coreográficas.

  • Vira: energia alegre, saltitante, rodopios, palmas que marcam a síncope.
  • Chula: elegância e passo firme, figuras em quadra, resposta entre filas.
  • Malhão: refrão viciante, andamento mais serrado, um convite ao coro.
  • Cana-verde: leveza melódica, deslocações marcadas e meneios discretos.
  • Fandango: o desafio, a ginga individual, o espaço para o virtuosismo.

No meio de tudo, a desgarrada. Dois cantadores, uma concertina, versos improvisados que sublinham a atualidade, o humor, a provocação saudável. São minutos de alta tensão criativa, nos quais o tocador segura o terreno, prepara as entradas, travessa o pulo da rima com mudanças certeiras de acordes e respiros.

Ranchos, trajes e a coreografia da identidade

Os ranchos folclóricos são guardiões de memória e forma. Ensaiam coreografias que preservam traços locais, mas também aproximam o público da vivência rural e marítima que moldou a região. O traje à lavradeira, o traje à mordoma, o ouro de Viana, a indumentária dos pescadores. Tudo conversa com as modas cantadas.

Há uma estética rigorosa: camadas de saias e aventais, lenços, coletes, chapéus. Quando alinhados com a pulsação da concertina, criam um quadro em movimento que impressiona quer se esteja encostado à balaustrada do rio, quer num largo apinhado no centro histórico.

E há os tocadores que integram os ranchos, muitas vezes acompanhados de cavaquinho, braguesa, ferrinhos e bombo. Esse pequeno naipe dá densidade e empurra a roda para a frente.

A romaria por dentro: rituais, ruas e sons

A Senhora d’Agonia tece uma semana onde fé e festa andam de braço dado. A música atravessa procissões e desfiles, visita tascas e coretos, junta vizinhos madrugada dentro. Os momentos com maior presença de concertinas são facilmente notados pela vibração que se instala nos adros e nos arruamentos.

Alguns pontos da programação que costumam concentrar a força do folclore:

  • Cortejo Etnográfico, vitrine das tradições agrícolas, marítimas e artesanais.
  • Desfile da Mordomia, onde o traje, o ouro e a postura ganham protagonismo.
  • Procissão ao Mar, com barcos engalanados e a fé a bordo.
  • Rusgas noturnas de concertinas, quando grupos percorrem as ruas a tocar e a cantar.
  • Festas espontâneas em praças e largos, com rodas improvisadas.

Tudo isto convoca a cidade. E atrai visitantes que passam a sentir-se vizinhos, pelo menos enquanto duram os compassos.

Onde a concertina manda no compasso

A distribuição dos sons ao longo do evento pode ser vista como um mapa. Abaixo, um quadro indicativo de momentos onde a concertina costuma ter presença forte, a par de outras formações tradicionais.

Momento/Local Tipos de peças Instrumentos em destaque Ambiente e interação
Rusgas noturnas nos bairros Viras, malhões, desgarradas Concertina, ferrinhos, bombo, cavaquinho Próximo e intimista, rodas rápidas
Coretos e palcos informais Chulas, cana-verde Concertina com tocata completa Público de pé, muita participação
Cortejo Etnográfico Marchas, modas de trabalho Concertina, braguesa, bombos, gaitas pontuais Desfile contínuo, cadência regular
Tascas e largos após o fogo Fandango, cantigas ao desafio Concertina solo com apoio rítmico Espontâneo, convivência até tarde
Encontros de ranchos Repertório tradicional Concertina integrada em conjunto do rancho Apresentações formais e trocas de modas

Este mapa não é rígido. É um guião vivo, adaptado ao pulso do público, ao clima e ao ímpeto dos tocadores.

Técnica, estilo e pequenos segredos do toque

Ser tocador de concertina na Senhora d’Agonia exige mais do que saber o tema. Pede resistência, ouvido atento e capacidade de resposta. O chão pode estar irregular, o círculo estreito ou largo, a voz do cantador com mais ímpeto que o habitual.

  • Ornamentação: cortes rápidos, trilos curtos, apogiaturas que dão a graça minhota.
  • Dinâmica do fole: respirações largas para as frases de chamada, compressões incisivas para marcar entradas e palmas.
  • Baixos e acordes: sem rebuscamento, mas com firmeza, sustentando a dança e a melodia.
  • Passagens entre tonalidades vizinhas: úteis para apoyar o canto ou elevar a energia da roda.
  • Tempo e balanço: a ligeira antecipação do ataque dá nervo à vira e mantém a chula erguida.

Em contextos de rua, o som precisa de projetar. Tocadores experientes trabalham a postura do fole e o ângulo da caixa para lançar o timbre acima do burburinho.

O diálogo com outras tradições sonoras

Os bombos e os Zés Pereiras marcam presença. A concertina convive com esses timbres graves, e por vezes com a gaita-de-fole minhota, criando camadas que se escutam a quarteirões de distância. Em certas passagens do cortejo, a concertina oferece o detalhe melódico; noutros, empresta o ritmo que segura os pés.

O cavaquinho e a viola braguesa entram como aliados naturais. Juntos, desenham um tapete onde o coro pode assentir com força e a dança se torna inevitável.

Repertório vivo: letras, glosas e graça popular

A tradição não é um museu. No Minho, as letras reinventam-se, mantendo estruturas reconhecíveis:

  • Quadras soltas com rimas simples e humor rápido.
  • Refrões fáceis de pegar, repetidos para a roda ganhar corpo.
  • Citações locais, brincadeiras com nomes de ruas, referências ao tempo, à pesca, à lavoura.

A desgarrada assume o papel de crónica imediata. Numa ponta, o cantador provoca; na outra, chega a resposta. A concertina medeia, segura o compasso e oferece a entrada exata para a réplica. É uma arte de segundos que só se aprende no calor das rodas.

Aprender a tocar, aprender a dançar

Se a tradição se mantém, é porque passa de mãos em mãos. Em Viana e por todo o Minho, existem escolas, associações culturais e coletividades que ensinam concertina e dança. Os mestres aparecem também em oficinas informais, muitas vezes organizadas em vésperas da festa.

Quem chega de fora encontra várias portas de entrada:

  • Aulas de iniciação à concertina com foco em viras e chulas.
  • Workshops de danças tradicionais, abertos ao público.
  • Tertúlias de canto ao desafio, com dicas sobre improviso e métrica.

Basta dar o primeiro passo. A roda acolhe quem quer aprender.

Etiqueta de roda e participação do público

Há códigos de convivência que mantêm tudo fluído e agradável, seja numa rusga ou num palco improvisado.

  • Esperar o sinal do tocador para a mudança de figura.
  • Deixar espaço para o fandango quando alguém entra a solo.
  • Evitar interromper a roda para filmar de perto. Um passo atrás já resolve.
  • Aplaudir e agradecer aos músicos, sempre.
  • Se levar uma concertina para se juntar, combinar previamente a tonalidade e a entrada.

Pequenos gestos, grandes resultados. O respeito mantém a energia alta e a festa saudável.

Luthiers, manutenção e escolhas do instrumento

A qualidade do instrumento faz diferença. No universo das concertinas portuguesas, há artesãos que conhecem as exigências do reportório minhoto e ajustam vozes, palhetas e ergonomia para resistir a sessões longas. Alguns conselhos práticos para quem toca durante a romaria:

  • Revisão antes do evento: palhetas afinadas, válvulas em bom estado.
  • Correias confortáveis e fiáveis, fole sem fugas.
  • Lubrificação moderada das mecânicas, evitando ruídos parasitas.
  • Estojo leve mas resistente, já que a circulação entre palcos e ruas é constante.

Quanto à afinação, escolher aquela que melhor serve a sua voz ou o coro habitual do grupo. Em conivência com o repertório, claro.

Captação de som em ambientes de rua

A rua é caprichosa. Quem quiser registar atuações ou amplificar sem perder a estética da concertina precisa de algum cuidado técnico.

  • Microfones de clip fixados à caixa, com bom isolamento mecânico.
  • Alternativa com microfone direcional a curta distância, evitando acoplamentos.
  • Amplificação discreta, preservando a dinâmica natural do fole.
  • Colocação do altifalante acima da cabeça do público, para distribuir o som sem agressividade.

O objetivo é projetar sem esmagar, mantendo o ataque dos botões e a respiração do fole intactos.

Gastronomia, artesanato e encontros paralelos

A festa espalha-se por tabuleiros de rojões, caldo verde fumegante, pão de ló, sardinha e vinho servido com conversa. À mesa cruzam-se tocadores e dançarinos, visitantes e gente da terra. As lojas e as bancas de artesanato exibem filigrana, lenços, instrumentos tradicionais.

A concertina aparece também enquanto objeto cultural. É comum ver artesãos a falarem do ofício, a mostrarem madeira, palhetas, cuidados de construção. Para quem se interessa pela técnica e pela estética, é uma oportunidade rara de juntar olhar e ouvido.

Percursos pela cidade sonora

Uma forma de viver a festa é imaginar um roteiro que ligue sons e lugares:

  • Manhã no centro histórico, a ver ensaios e pequenos encontros de concertinas.
  • Tarde com passagem pelo cortejo, espreitando a relação entre passo e compasso.
  • Noite nas rusgas, seguindo o som e deixando o mapa no bolso.

Cada esquina pode reservar uma roda que não estava no programa. A surpresa faz parte do encanto.

Memórias que perduram

Quem já passou por Viana nesta altura fala de cores e sons que não se esquecem. Do brilho das mordomas, do rumor das embarcações na procissão ao mar, do estalar dos bombos que arrebatam o peito. Mas a lembrança mais persistente é, muitas vezes, uma melodia simples tocada numa concertina gasta, num largo improvisado, quando a roda fica pequena para tanta vontade de dançar.

É aí que a tradição prova a sua força: no encontro entre um instrumento que cabe nos braços e uma cidade que cabe em muitas canções.

Para quem vem de fora, algumas dicas úteis

  • Chegar cedo para garantir acomodação e evitar trânsito nas horas de maior afluência.
  • Calçado confortável. Vão ser muitos passos.
  • Água e um casaco leve para as madrugadas junto ao rio.
  • Respeitar as procissões e os espaços de culto.
  • Perguntar e ouvir. Os locais têm histórias que valem por guias inteiros.

Levar curiosidade e disponibilidade. O resto chega com o primeiro acorde.

O futuro em construção

Novas gerações aproximam-se da concertina com vigor. Há quem crie composições originais que respiram Minho sem perder o enraizamento. Há colaborações com outros estilos, com cuidado para preservar o passo e a cadência que fazem desta música um convite ao corpo, não apenas ao ouvido.

Festivais, encontros de tocadores e circuitos pedagógicos estão a consolidar uma base que garante continuidade. A romaria, por sua vez, oferece palco, público e contexto. Tudo concorre para que a concertina continue a mandar no compasso.

Um convite que se renova

Quando o verão se instala, Viana chama. O rio reflete luzes, o ouro brilha, e as concertinas traçam linhas invisíveis que ligam quem chega a quem vive ali desde sempre. Dançar numa roda ou ficar só a bater o pé já é participar.

Se o objetivo for levar algo consigo, que seja uma melodia memorizada, um refrão apanhado de ouvido, o gesto exato de aplaudir um fandango bem dançado. A festa existe para isso: para multiplicar passos, vozes e músicas que valem por raízes.

Back to blog