Sentimento de saudade no regresso a casa durante as festas d’Agonia
Chegar a Viana em agosto tem qualquer coisa de promessa cumprida. O comboio abranda, a ponte de ferro risca o rio, o sal do Atlântico entra pelas narinas e o coração acelera sem pedir licença. Há meses que o corpo anda longe, mas a cabeça ficou sempre aqui, à espera do toque dos bombos, do brilho do ouro, do sorriso de quem nos chama pelo nome na esquina do café. Voltar às Festas d’Agonia é mais do que ir a uma romaria. É testar a força da palavra saudade e perceber que, afinal, ela sabe olhar em frente.
Chegar pela ponte e reconhecer o vento
Quem volta a casa pelo tabuleiro metálico da ponte, a ver o Lima a espraiar-se até ao mar, encontra um vento que não existe em mais nenhum lugar. Um vento que carrega memórias de infância e o rumor das procissões, o chiar das rodas das carroças, o riso das varandas abertas. É um vento com personalidade, que desarruma o cabelo e põe cada memória no sítio certo.
Nessa travessia, a cidade aparece aos poucos. O monte com a basílica lá em cima, a malha miúda das ruas, os mastros coloridos a encher as avenidas. De repente, tudo é familiar, mas nada é igual. Porque nós também já não somos os mesmos.
A cidade veste-se e a alma acompanha
Há dias do ano em que Viana se transforma num cenário povoado por tradições que mexem com a pele. Colchas nas janelas, arcos de luz, bandeiras, mastros enfeitados, os gigantones e cabeçudos que lembram que a infância ainda mora aqui. As mordomas atravessam a rua com passo seguro, vestidas de linho e veludo, a filigrana a cintilar ao sol como se o passado estivesse a piscar-nos o olho.
A cidade respira romaria e o corpo entra nesse compasso sem esforço. O calendário fica mais elástico, as horas passam devagar, e a cada esquina espera-nos um som. Uma concertina que chama à dança, um grupo de Zés Pereiras, o pregão de quem vende farturas, um ensaio de rusga que começa tímido e acaba numa onda de braços no ar.
Saudade que olha para a frente
Há quem pense que saudade é ficar preso ao que foi. Em Viana, durante as Festas d’Agonia, ela funciona de outra maneira. Reúne gerações, junta quem foi para fora com quem ficou, e abre espaço para novos gestos, novas palavras, novas vozes. É uma saudade ativa. Que faz mexer os pés, que puxa pelos abraços, que se mete no meio da rua para nos obrigar a dizer presente.
O regresso é feito disso. De voos marcados com antecedência, de malas que trazem prendas de outras paragens, de nervos miúdos antes de tocar à campainha dos pais. E de um alívio quase infantil quando a primeira pessoa que encontramos reconhece a nossa cara e chama por nós sem hesitar.
Rituais que afinam a memória
As Festas d’Agonia são um emaranhado de rituais que, para quem volta, funcionam como um guião. Em cada momento, um gatilho sensorial. Em cada rua, um pedaço de história.
Momento | Onde | O que acontece | O que se sente | Cheiros e sons |
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Alvorada | Vários pontos da cidade | Foguetes a romper a manhã | O corpo desperta antes do relógio | Pólvora, eco pelos telhados |
Desfile da Mordomia | Centro histórico | Mulheres em traje, ouro a brilhar | Orgulho, espanto, continuidade | Murmúrio de aplausos, passos compassados |
Procissão ao Mar e à Terra | Marginal e doca | Barcos engalanados e bênção dos pescadores | Gratidão e respeito pelo trabalho do mar | Cheiro a alga, buzinas, água a bater |
Cortejo Etnográfico | Avenidas principais | Trajes, ofícios, carros alegóricos | Identidade partilhada, memória viva | Concertinas, cantigas, ferragens a ranger |
Tapetes de sal | Ruas de bairros participantes | Desenhos efémeros feitos por mãos pacientes | Silêncio reverente, curiosidade | Sal húmido, conversa sussurrada |
Rusgas à noite | Bairros e largos | Dança, cantares, encontros improvisados | Euforia, pertença, cumplicidade | Bombos, palmas, gargalhadas |
Fogo do Rio | Marginal sobre o Lima | Espetáculo de fogo refletido na água | Arrepio na pele, um “uau” coletivo | Estalos no ar, música ao longe |
Uma agenda destas não se cumpre como quem risca tarefas. Vive-se. E é nessa vivência, entre um reencontro e um petisco, que o tal sentimento difuso ganha corpo.
O ouro e o linho, o gesto e o legado
O brilho do ouro em Viana não é ostentação. É linguagem. Cada coração, cada arrecada, cada grilhão conta um enredo de família. Os cordões pesam, mas pesam mais as histórias de quem guardou, emprestou, passou às netas. O traje, em linho e cores marcadas, é outro texto. Costurado por mãos que não se apressam, bordado com motivos que remetem à terra e ao rio.
Para quem regressa, ver o Desfile da Mordomia é como folhear um álbum coletivo. Até os detalhes são gatilhos de lembranças. O lenço dobrado daquela forma, o avental com determinado padrão, a forma de prender o cabelo. Os olhos reconhecem, o coração confirma.
O mar como altar
A Procissão ao Mar tem qualquer coisa de intimidade pública. Os barcos engalanados, as redes a secar, as velas que sobem como se rezassem. A cidade para para agradecer e pedir. Quem volta de longe percebe ali a física da devoção. Não é só religião, é reconhecimento do corpo que trabalha, do risco diário, da comunidade que se organiza para amparar uns aos outros.
No cais, os abraços demoram. O cheiro a alga e a sal não é só mar, é casa. As preces misturam-se com o barulho das marés, e por instantes o mundo encolhe até caber entre a doca e a ponte.
Sabores que nos dão chão
A fome durante as festas é uma fome diferente. É apetite por sabores que andam connosco desde cedo e que, lá fora, nunca sabem bem igual. Um copo de vinho verde fresco com amigos, a broa que esfarela na mão, a sardinha que ainda pinga no pão, o caldo verde às tantas quando a noite já pesa.
Na rua, tudo convida:
- Farturas que azedam os lábios de açúcar
- Pão com chouriço a sair a fumegar
- Rojões tenros, a cheirar a alho e louro
- Filetes de pescada com arroz de tomate
- Rabanadas no Verão não são comuns, mas alguém aparece com uma travessa e o ritual repete-se
Não é só gula. É território. O corpo reconhece a temperatura certa do vinho, a textura da broa, o sal que fica nos dedos depois das sardinhas. Esse pequeno vocabulário sensorial também é língua materna.
Sons que marcam o passo
Não há regresso sem música. Os bombos batem no peito e sincronizam passos. As concertinas puxam por uma alegria que tem menos a ver com técnica e mais com intimidade. E depois há as vozes. As das rusgas, roucas de noite e de riso. As dos grupos que se aquecem num canto e acabam a criar rodas de dança no meio da rua. As dos mais velhos que assobiam a melodia certa sempre que o corpo pede.
Em cada esquina, um compasso. E o ouvido vai colhendo essas migalhas sonoras para as guardar e levar de volta no bolso.
Pequenas rotinas que fazem o regresso
Voltar a casa durante as Festas d’Agonia também é refazer rotinas em versão festiva:
- Ir ao Jardim da Marginal depois do almoço, sentar no banco habitual e contar barcos
- Subir ao Monte de Santa Luzia, entrar na basílica em silêncio e espreitar a cidade lá em baixo
- Passar no mercado e comprar flores para a avó, agora deixadas no cemitério com uma frase que não precisa de ser dita
- Entrar no café onde o balcão ainda sabe o nosso pedido, escutar duas conversas em simultâneo e rir com a mesma piada de sempre
- Voltar a casa já tarde, com brilhos de fogo preso na retina
São pontos de ancoragem. Coisas simples que lembram que o tempo passa, mas a mão que segura a chávena mantém o mesmo jeito.
Tecidos, agulhas e a modernidade que cabe
O bordado de Viana e a ourivesaria de filigrana dialogam com os dias de hoje de maneiras que fazem sentido. Há oficinas que abrem portas, artesãos que explicam o porquê de cada ponto, designers que colaboram com quem sabe mais e há muito mais tempo. O Museu do Traje ajuda a fixar detalhes, e uma nova geração leva esses elementos para o presente, com respeito e curiosidade.
Quem tem raízes longe traz também perguntas novas. Como preservar sem congelar. Como vestir um lenço sem o transformar num adereço vazio. Como usar uma peça de ouro da avó e, ao mesmo tempo, assumir um gosto contemporâneo. A cidade tem sido capaz de dar respostas que não traem a sua história.
A tecnologia não estraga o abraço
Telemóveis no ar a gravar o fogo, transmissões em direto para quem não conseguiu vir, grupos de mensagens a combinar encontros nos largos. A tecnologia entrou nas festas, mas não se impõe. Serve para chegar a quem ficou longe e para multiplicar memórias. O abraço continua quente, o olhar continua a dizer tudo, a música não pede autorização para arrepiar.
No fim, os vídeos ficam, as fotografias circulam, e as histórias ganham mais vidas.
Logística do coração e dos pés
Regressar com emoção não dispensa alguma organização. Pequenas escolhas libertam tempo para aquilo que importa.
Dicas simples que poupam trabalho e stress:
- Reservar estadia com antecedência, as datas são muito concorridas
- Ver horários de comboios e autocarros, poupam filas e estacionamento
- Calçado confortável, vai passar horas de pé a dançar, ver, conversar
- Garrafa de água na mochila, noites longas pedem cuidado
- Um lenço ou agasalho leve, a nortada surpreende
- Combinem pontos de encontro, a rede pode falhar com tanta gente
- Proteger as crianças do barulho dos bombos com tampões ou auscultadores
- Respeitar quem trabalha e quem mora no centro, recolhendo lixo e evitando bloquear entradas
Parecem pormenores. No terreno fazem toda a diferença.
Um mapa afetivo que cada um desenha
Há um mapa oficial dos eventos e há outro, invisível, que cada pessoa desenha. Esse mapa liga casas, ruas, rostos e cheiros. Liga também tempos diferentes da vida. O primeiro beijo num banco que ainda existe, o primeiro trabalho numa loja que mudou de dono, a varanda de onde se viu a primeira procissão e que agora alberga um novo morador que, sem saber, alimenta a mesma tradição.
Voltar nas Festas d’Agonia é ter licença para percorrer esse mapa sem pressa. Detalhe a detalhe, o desenho fica mais nítido.
Quem parte e quem acolhe
As festas mostram como a cidade sabe receber. Há um entendimento tácito entre quem partiu e quem ficou. Um lado traz novidades, sotaques misturados, outras experiências. O outro preserva, afina, organiza. Sem este equilíbrio, a romaria seria menos rica.
Nas conversas ouve-se de tudo. Perguntas sobre a vida lá fora, que horas se acorda no outro país, quanto custa a renda. E notícias de cá, da colheita, do campeonato, do tempo que tem sido difícil para o mar. Cada informação entra como um fio numa teia, e a ligação fica mais forte.
O lado efémero que ainda assim perdura
Há algo de muito bonito na forma como certos momentos desaparecem assim que acabam. Os tapetes de sal dissolvem-se, o fogo cai em cinza, um coro termina e o silêncio volta a ter lugar. Esse lado efémero amplifica o cuidado. As mãos que criam sabem que a obra é breve, por isso dão tudo. Quem assiste sabe que amanhã já será diferente, por isso guarda mais fundo.
Talvez seja por isso que a saudade que nasce aqui não dói tanto. Ela carrega a certeza de um retorno e a consciência de que cada edição traz um acrescento. Sempre igual e sempre outra.
Entre o rio e o mar, um lugar para respirar
A geografia também ajuda. O rio Lima corre para o Atlântico com uma calma que engana, e a cidade soube encontrar o seu compasso na confluência destas águas. Há quem precise subir ao Santa Luzia para respirar fundo e organizar emoções com a vista a perder de vista. Outros preferem encostar na doca e contar as luzes que se acendem ao fim do dia. Qualquer um destes gestos faz parte do regresso.
E quando os bombos batem lá ao fundo, até as dúvidas ganham um ritmo mais suportável.
Palavras que ficam no ouvido
Dizem que Viana tem um modo próprio de falar, uma cadência que o ouvido reconhece de longe. Quem volta reencontra expressões, provérbios, modos de acolher. Um “então, já chegaste” pode querer dizer mil coisas. Um “aparece” já dispensa convite formal. Uma “saída” não precisa de hora marcada. As festas são também isto, um laboratório vivo de linguagem.
No fim do dia, quando a cidade abranda uns minutos, o corpo tem aquela exaustão feliz de quem esteve onde devia estar. O relógio desperta cedo no dia seguinte. E apetece repetir tudo, abraçar mais, ouvir mais, dançar mais. Porque a saudade, aqui, aprende a respirar ao ritmo dos bombos e a brilhar ao compasso das luzes refletidas no rio. E assim o regresso deixa de ser apenas volta para passar a ser pertença.