As mordomas embaixadoras da cultura vianense e a tradição

Quando se ouve o rufar dos bombos em Viana do Castelo, há uma imagem que se impõe: um mar de saias engomadas, coletes de veludo e ouro a cintilar. No meio do brilho e da música, sobressaem figuras que dão rosto à identidade local. São mulheres que carregam histórias antigas, fé, destreza e uma estética inconfundível.

Em cada agosto, a cidade transforma-se. Mas o símbolo não vive apenas nesses dias. Vive no gesto quotidiano de quem preserva a arte, a devoção e a língua de uma comunidade que aprendeu a festejar sem esquecer de onde veio.

O que significa ser mordoma

A palavra remete para quem toma conta, quem é guardiã. Em muitos lugares do Minho, a mordoma assumia a responsabilidade por bens da igreja e por tarefas da festividade. Em Viana do Castelo, o termo ganhou relevo público e rosto feminino, tornando-se sinónimo de figura de destaque nos rituais e no protocolo das festas.

Ser mordoma não é apenas vestir um traje. É aceitar uma responsabilidade social, representar o bairro, a freguesia, a família e a cidade. É aprender códigos de postura, o modo de colocar o lenço e a ordem certa das voltas de ouro.

Hoje, muitas mordomas são jovens que conciliam estudos e trabalho com ensaios, encontros de costura, demonstrações de bordado e uma agenda intensa de eventos culturais. Levam consigo um legado e um compromisso.

Uma história feita de devoção e representação

A romaria de agosto, dedicada a Nossa Senhora da Agonia, firmou ao longo dos séculos um calendário onde surgem desfiles e procissões muito próprios. Dentro desse ciclo, a presença das mordomas ganhou forma pública e muito visível.

Ao longo do século XX, a ampliação do número de participantes e a afirmação identitária do Minho deram às mordomas um lugar de destaque. O desfile que lhes é dedicado tornou-se uma referência, abrindo portas ao reconhecimento do traje e do ouro vianense como património vivo.

Há também dimensão de devoção. Ser mordoma implica relação com a paróquia e com a imagem que se celebra. Implica serviço, com um brilho que é cerimonial, mas também trabalho de bastidores, feito de preparação meticulosa e de horas de aprendizagem.

O traje que fala por si: códigos e simbolismo

O traje vianense comunica sem palavras. Cores, padrões, tecidos e acessórios constroem uma gramática visual que identifica épocas, freguesias e ocasiões.

Elementos mais comuns:

  • Colete de veludo com bordados e aplicações
  • Camisa de linho com rendas e pormenores minuciosos
  • Saia engomada, muitas vezes em tons vivos, com barra trabalhada
  • Avental bordado
  • Lenço na cabeça, bem preso e ajustado
  • Meias de renda
  • Chinelas
  • Algibeira e outros pequenos acessórios

Nada é aleatório. A colocação do lenço, o arranjo do cabelo, a combinação de cores e até a forma de segurar o avental têm regras. As mordomas sabem que a memória também mora nos detalhes.

Quadro de peças essenciais

Peça Materiais típicos Função no conjunto Notas de autenticidade
Colete Veludo, bordado à mão Estrutura e nobreza do traje Bordados tradicionais, motivos florais
Camisa Linho, renda, labirinto Base branca que realça o ouro Mangas trabalhadas, punhos delicados
Saia Lã ou algodão, engomada Movimento e imponência Barras com desenho reconhecível
Avental Tecido bordado Acabamento e contraste Bordado de Viana, ponto regular
Lenço Algodão ou seda Identidade e recato Dobra certa, ponta bem posicionada
Meias Algodão, renda Harmonia e cuidado Desenho fino e uniforme
Ouro Filigrana, correntes, peças Símbolo de fortuna e de afeto Peças tradicionais, boa proporção

Ouro que conta histórias

O ouro vianense não é apenas adorno. São camadas de memória e de afeto, feitas de peças passadas de geração em geração. Nas voltas que se colocam ao peito, reconhecem-se corações, cruzes, laças, fios entrançados, medalhas de promessa. Cada peça tem nome, técnica e peso emocional.

A filigrana, com a sua delicadeza, é destaque. Requer mãos treinadas, paciência e um olhar capaz de guiar o metal por caminhos finíssimos. Há uma ética do ouro, aprendida em casa e com as ourivesarias locais, que respeita a proporção e a elegância do conjunto.

A mordoma sabe que não é apenas brilho. É também mensagem. O coração é símbolo de afetos e devoção. As cruzes marcam fé. As correntes mais pesadas fazem parte de uma estética que, usada com mestria, se mantém equilibrada e imponente.

Festas, calendário e ritmo da cidade

Viana do Castelo ganha vida num programa que se estende por vários dias de agosto. Há momentos que atraem visitantes de todo o país e de fora, dando palco às mordomas.

  • Desfile dedicado às mordomas, com centenas de mulheres trajadas a rigor
  • Procissões de cariz religioso, com participação ordenada e solene
  • Cortejos etnográficos que mostram ofícios, danças e cantares
  • Serenatas, arraiais e encontros de tocadores
  • Exposições temáticas, visitas orientadas e demonstrações de artesanato

Em cada um destes momentos, o olhar público encontra nas mordomas a síntese entre fé, arte aplicada e sentido de comunidade. A cidade vibra com as palmas e o compasso das concertinas.

Embaixadoras de uma cultura viva

Usa-se muitas vezes a palavra embaixadora para falar de quem representa um lugar fora de casa. As mordomas fazem esse trabalho com naturalidade. Participam em eventos em Portugal e no estrangeiro, acolhem delegações, aparecem em campanhas de promoção cultural e turística, colaboram com museus e escolas.

A presença delas ajuda a fixar imagens de Viana. O traje é um cartão de visita poderoso, que abre conversas sobre história, artesanato, gastronomia, paisagem e formas de vida. É um fio que liga o rio Lima ao mundo.

Numa época em que a atenção é disputada por muitos estímulos, a autenticidade do gesto e do olhar conta. As mordomas tornam visível uma forma de estar colectiva, ancorada no tempo e aberta ao futuro.

Oficinas, mestres e a cadeia de valor

À volta do traje e do ouro existe uma rede de trabalho que sustenta a qualidade do que se vê em festa. Oficinas de bordado, ourivesarias, casas de tecidos, mestres engomadores, fotógrafos e costureiras especializadas. Há uma economia da tradição, feita de saberes transmitidos e de investimento em formação.

Algumas notas sobre esta rede:

  • A formação é prática, baseada no contacto com mestres
  • O abastecimento de materiais procura equilibrar autenticidade e resistência
  • As oficinas colaboram com museus e associações na recolha e estudo de peças antigas
  • O restauro de trajos exige conhecimento técnico e respeito pela integridade do objeto

Quando uma mordoma veste o traje, dá corpo a muitos dias de trabalho invisível. Cada costura, cada nó e cada dobra condensam horas de atenção.

Preparação: da casa ao largo

Nada é improvisado. A preparação começa semanas antes e acelera nos dias anteriores.

  • Ensaios de postura e deslocação em grupo
  • Revisão do traje, limpeza e engomar de saias
  • Separação e inspeção das peças de ouro
  • Provas de combinação de cores e padrões
  • Ajustes de última hora feitos por mãos experientes

No dia, a casa transforma-se em bastidor. Mães, tias, avós e amigas ajudam. O lenço é vincado, o cabelo apanhado com precisão, as voltas de ouro ganham forma a partir do osso do pescoço, descendo com simetria. O espelho confirma, mas é o olhar das mais velhas que valida.

Sair para a rua é parte do rito. Respira-se fundo. O compasso dos bombos dá o primeiro passo.

Etiqueta do traje e postura pública

Há normas de apresentação que as mordomas dominam, não escritas em regulamentos formais, mas aprendidas na prática.

  • Evitar acessórios modernos que interfiram com a unidade do traje
  • Manter as mãos ocupadas com gesto elegante, por vezes segurando a algibeira
  • Respeitar a ordem das voltas de ouro e a proporção das peças
  • Cuidar da passada, alinhando com o grupo
  • Cumprimentar com sobriedade e sorriso, sem perder o ritmo

O resultado é uma presença forte, que combina serenidade e energia.

Conhecimento transmitido entre gerações

Viana cuida do seu património. O Museu do Traje, as associações culturais, as escolas e as paróquias têm programas de recolha, estudo e partilha. Há aulas de bordado, demonstrações de filigrana e encontros onde se contam histórias sobre peças que cruzaram séculos.

Este conhecimento circula muito pela palavra e pelo gesto. Uma jovem aprende com a avó a dobrar o lenço. Um ourives mostra o ponto certo para que o coração brilhe sem exagero. Uma costureira explica como a saia ganha roda com ferro e goma.

Sem esta transferência, o traje perde alma. Com ela, ganha futuro.

Olhar contemporâneo, fidelidade à essência

A cidade cresce, as vidas mudam, e o traje mantém-se. Não como peça de museu encerrada numa vitrina, mas como objeto vivo, capaz de dialogar com o presente.

Há debates sobre materiais, conforto e sustentabilidade. Investiga-se a origem de padrões, documentam-se variações, propõem-se ajustes discretos que não ferem a coerência do conjunto. As mordomas estão atentas e participam.

O equilíbrio entre fidelidade e adaptação é trabalhado com cuidado. A arte está em manter a raiz visível.

Impacto social e educativo

A visibilidade das mordomas tem efeitos em vários planos:

  • Reforça o sentimento de pertença local
  • Valoriza ofícios e promove emprego qualificado
  • Atrai visitantes e dinamiza a economia urbana e rural
  • Estimula a investigação e a documentação do património imaterial
  • Serve de referência para crianças e jovens, sobretudo raparigas, que encontram modelos de liderança cultural

Quando uma turma visita uma oficina de bordado e vê a precisão do ponto, compreende que a beleza pede tempo. Quando um grupo de jovens participa num desfile, percebe que a disciplina faz parte da festa.

Dicas para quem visita Viana em agosto

Quer ver de perto e com respeito? Algumas recomendações ajudam a tornar a experiência melhor para todos.

  • Chegue cedo aos desfiles e procure pontos de vista elevados
  • Evite bloquear a passagem das comitivas ao tirar fotografias
  • Peça autorização antes de fotografar em plano muito aproximado
  • Visite o Museu do Traje para entender o que está a ver na rua
  • Se comprar artesanato, privilegie oficinas com trabalho reconhecido
  • Em restaurantes e cafés, reserve com antecedência durante a romaria

Viana tem muitas camadas. A festa é uma porta de entrada, mas vale a pena caminhar junto ao rio, subir ao santuário de Santa Luzia e ouvir as histórias dos moradores.

Vocabulário útil

Uma pequena ajuda para ler melhor os sinais do traje e da festa.

Termo Significado breve
Mordoma Mulher com função de representação e serviço
Voltas de ouro Conjunto de colares e correntes usados ao peito
Filigrana Técnica de ourivesaria com fios muito finos
Avental Peça frontal bordada que completa o traje
Lenço Pano dobrado e atado na cabeça
Algibeira Bolsa do traje, pendurada à frente
Desfile Saída pública organizada de grupos trajados
Engomar Processo de dar forma e rigidez à saia

Este léxico é ponto de partida. Quanto mais se aprende, mais se repara nos pormenores que faltam nas palavras.

Um rosto, muitas vozes

Quando uma mordoma avança pelo largo, não vai sozinha. Traz consigo as mãos que bordaram a camisa, as histórias que moldam o ouro, o riso das tardes de ensaio e a fé que a fez aceitar a responsabilidade. Cada passo é um diálogo entre bairro e cidade, mar e serra, ontem e amanhã.

Viana reconhece-se nesse movimento. A festa ilumina, mas o trabalho diário sustenta. É por isso que, ano após ano, as mordomas continuam a erguer o padrão do seu lugar e a partilhá-lo com quem chega.

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