As vozes e cânticos das festas d’agonia: tradição e emoção

Não é preciso perguntar a ninguém onde ficam as festas, basta seguir as vozes. As de quem reza, de quem canta, de quem responde no coro improvisado que nasce em esquinas e largos. Em Viana, quando agosto aquece, o som torna-se geografia. A devoção abre caminho, o povo afina as memórias, as bandas aquecem os metais e, de repente, a cidade transforma-se num corpo que respira música.

Há quem chegue pela primeira vez e fique quieto, a ouvir. Há quem reconheça de imediato o compasso do Minho, a cadência dos vira, a emoção das ladainhas. O que parece simples tem décadas de transmissão invisível. Uma afinação que passa pela cozinha e pela sacristia, pelos ensaios em garagens, pelos alpendres onde se apuram entradas e saídas, pelo rumor do mar que dá o tom às preces.

Um território de vozes

As Festas d’Agonia fazem da voz uma casa com muitas divisões. A cada momento, um registo. A cada rua, um timbre.

  • Na igreja, o coro e o povo, numa reza cantada que estende as palavras e as folhas do missal.
  • No adro, o canto que abre o sorriso, com danças de roda e ritmos de vira, malhão e chula.
  • Na Ribeira, as ladainhas que embarcam com os pescadores e as suas famílias, num abraço sussurrado entre água e sal.
  • Nas rusgas, as cantadeiras em harmonia de terças, a concertina a puxar pela resposta.

O que une estes espaços é a convicção de que cantar não é ornamento. É o próprio gesto de estar.

Quando a devoção se faz som

Há uma diferença nítida entre a palavra dita e a palavra cantada. Na missa solene, o ordinário litúrgico ganha contorno mais largo. Os “Senhores, tende piedade” não se apressam, gravam-se como quem escreve a lápis grosso sobre o papel. O mesmo se passa nas ladainhas: os nomes dos santos, repetidos, formam uma corrente de vozes que acompanha cada passo do andor.

Essa tensão entre recolhimento e projecção habita a Procissão ao Mar e ao Rio. Na margem, há silêncio de respeito, interrompido por frases longas de Ave-Marias e Salves, com pequenos floreios melódicos no final de cada invocação. Nos barcos engalanados, a voz curva com o baloiçar, como se a água afinasse a respiração.

O corpo a servir a voz

Cantar na rua pede outra técnica. O ar vibra diferente, a acústica foge para fachadas e varandas. Muitos cantam de peito aberto, a ressonância a vibrar na máscara, a boca bem desenhada para que cada sílaba ganhe caminho. Há quem desconheça os termos, mas aprendeu com a experiência a lançar a voz sem a quebrar.

Quem guia as respostas, muitas vezes uma mulher com lenço vermelho, marca entradas com os olhos e com o abanico da mão. É uma direção discreta, quase imperceptível, mas decisiva.

Polifonias que contam quem somos

No Minho, a harmonia espontânea vive de terças paralelas, às vezes de sextas, num tecido vocal que parece elementar e que, na verdade, guarda um fino equilíbrio. A linha principal segura a melodia, o contracanto sabe onde limpar e onde adensar. O resultado é uma espessura sonora que aquece sem pesar.

  • Terças paralelas: reforço emocional, proximidade imediata.
  • Pedal grave de homens em ladainhas: chão estável para a voz aguda.
  • Bordões ocasionais: sustentação para as passagens que pedem fôlego.

A afinação nem sempre coincide com a temperada, e ainda bem. Há microdesvios que trazem caráter, ecos modais que rimam com o antigo.

Instrumentos que chamam e respondem

A voz está no centro, mas raramente caminha sozinha. A instrumentação típica dá-lhe corpo, brilho, margem e continuidade.

  • Concertina: puxa o andamento, desencadeia chamadas, segura o tom entre quadras.
  • Gaita de foles: cor de procissão e de saída de igreja, timbre de solenidade.
  • Bombo e caixas: piso rítmico para as rusgas e para a marcha dos andores.
  • Cavaquinho e viola braguesa: o bordado das harmonias, o encosto percussivo do rasgueado.
  • Bandas filarmónicas: metais e madeiras para as marchas processionais e os pasodobles do cortejo etnográfico.

A confluência de vozes e instrumentos não é constante. Sabe quando recuar, quando mostrar presença absoluta, quando desaparecer para que a palavra fique a nu.

Momentos sonoros da festa

A leitura do programa pode focar desfiles e horários. Uma escuta atenta escreve outra agenda, feita de instantes.

Momento Tipo de canto Vozes predominantes Apoio instrumental Andamento
Missa solene Canto litúrgico responsorial Coro misto e assembleia Órgão, às vezes a cappella Lento e sustentado
Procissão da Mordomia Hino e marcha processional Coro espontâneo e devotos Bandas filarmónicas Regular, cerimonioso
Procissão ao Mar e ao Rio Ladainhas e Ave-Marias Vozes femininas em primeiro plano, graves de resposta Sem instrumentos ou com apoio muito discreto Pausado, ondulante
Noitada Cantares ao desafio, vira, malhão Cantadores, cantadeiras e coro de rua Concertina, cavaquinho, bombo Vivo, dançável
Rusgas Cantigas de roda e chamadas Grupos de freguesia Concertina e percussão Médio a rápido
Serenata à Senhora Cantos de devoção noturnos Pequenos grupos, andamento baixo A cappella ou cordas suaves Lento, recolhido
Cortejo Etnográfico Modinhas, cantos de ofício Coros de representação Bandas e grupos tradicionais Variável, teatral
Encontro de Bandas Marchas e passagens melódicas Instrumentistas Metais e madeiras Moderado, brilhante

Cada linha traz uma gramática distinta. O ouvinte atento reconhece-a, mesmo sem lhe dar nome.

Letras que ficam na memória

A língua do Minho pinta as quadras com cores específicas. As vogais abertas, as quedas de ditongos, o riso breve no final de verso. Há quadras que se repetem há décadas e ainda assim soam frescas.

  • Quadras de amor e picardia, trocadas ao desafio.
  • Louvores à Senhora, com imagens do mar e do linho.
  • Saudações à cidade, aos ofícios, às mordomas e aos pescadores.

Um exemplo de saudação, ouvido mais de uma vez ao cair da tarde:

Ó Senhora da Agonia
Senhora do mar aberto
Leva a reza na maré
Traz o nosso canto certo

E uma quadra de desafio, com a concertina a sorrir entre versos:

Cantaste que és da ribeira
Eu canto do alto do monte
Se a tua voz vem da água
A minha chega até a ponte

Não se trata de erudição, mas de precisão. Os termos escolhidos medem o tempo da cidade.

O papel das bandas filarmónicas

As bandas dão unidade a passos e percursos. A marcha processional, desenhada para corresponder ao avanço lento dos andores, garante sustentação e respirações. As madeiras articulam, os metais coroam, as percussões guiam o compasso. No cortejo etnográfico, a paleta muda, surgem pasodobles e arranjos de temas tradicionais que animam o público, sem roubar o foco aos cantos ditos pela comunidade.

Há um ponto essencial: quando a ladainha começa, a banda sabe calar. A alternância não é imposição, é entendimento tácito. Música ao serviço do momento.

Técnica sem manual

As cantadeiras afinam pela convivência. Não há pauta escrita para a maioria dos cantares, mas há regras implícitas.

  • Entradas claras, pelo respirar conjunto.
  • Repetição da última palavra, pequena cola entre versos.
  • Ajuste do volume consoante o espaço.
  • Recuo quando a solista cria um melisma, avanço quando a frase pede corpo.

Os ensaios, quando existem, ocorrem em cozinhas, sedes de associações, adros, salas de aula. A técnica nasce do uso e do cuidado. Quem falha, repete. Quem acerta, ensina sem alarde.

A acústica das ruas e das águas

O som reage às fachadas de granito, às arcadas, aos becos. Há travessas que criam um efeito de câmara, ideais para vozes a cappella. Há largos que pedem percussão forte, para que o pulso não se perca. Junto ao rio, o som abre, perde alguma definição e ganha amplitude. Nos barcos, a madeira devolve calor às frequências médias.

Os mestres de rua conhecem estes segredos. Para um hino longo, escolhe-se um corredor. Para as rusgas, um largo. Para as ladainhas, a margem, onde as palavras podem ir e voltar.

O que se aprende a ouvir

Quem assiste com atenção começa a notar camadas. Primeiro, a melodia evidente. Depois, a respiração conjunta. Por fim, a maneira como o grupo se organiza para não cansar.

  • Alternância de solistas para poupar fôlego.
  • Rodízio nas segundas vozes.
  • Microgestos para ajustar andamento: um olhar, um balanço de corpo, uma mão que sobe ligeiramente.

O ouvinte também participa. O murmúrio de resposta tem de ser claro, sem cobrir quem guia. O aplauso deve esperar pelo fim da peça, para não quebrar frases que ainda estão no ar. O respeito pela palavra cantada mantém o fio.

Histórias que se cantam

Há narrativas que regressam todos os anos. A tempestade de um verão distante, a rede que rasgou, a promessa feita e cumprida. Essas histórias aparecem em versos, às vezes com nomes próprios, às vezes com metáforas. Um canto pode transformar uma perda em pertença. Numa quadra breve, 4 versos entregam justiça e abrigo.

Quando uma mordoma entoa um louvor, não é apenas a sua voz. É a voz da sua família, da freguesia, das muitas mulheres que vestiram o traje e guardaram o segredo da afinação. Cada arrecada, cada fio de ouro, convoca outra camada de som silencioso.

O futuro que já se ouve

Grupos de jovens têm experimentado misturar o repertório tradicional com pequenas variações harmónicas e arranjos discretos. O essencial mantém-se: a palavra por cima da música, a dança a respeitar o canto, a devoção a marcar a pauta. Há registos digitais de alta qualidade que ajudam a fixar versões, sem engessar.

Arquivos comunitários, casas do povo e associações culturais começam a conservar gravações de velhos cantadores. Essas vozes, com a rugosidade do tempo e a doçura de quem já cantou muito, são referência para quem chega agora.

Boas práticas para registar

  • Pedir autorização, explicar destino das gravações.
  • Evitar microfones intrusivos em momentos de oração.
  • Identificar intérpretes e locais, sempre que possível.
  • Partilhar cópias com os grupos e com a paróquia.

A memória sonora vive de respeito e partilha. Se for guardada com cuidado, ganha vida nova.

Como participar sem perder o tom

Não é preciso ser local para cantar. Há pequenos gestos que abrem a porta.

  • Aprender duas ou três quadras simples antes da festa.
  • Ouvir primeiro, entrar nas respostas com discrição.
  • Seguir a concertina, que muitas vezes indica a altura.
  • Cantar com voz natural, sem gritar, para não cansar e não tapar os outros.
  • Em devoção, priorizar a inteligibilidade das palavras.

A festa vive dos que sabem e dos que querem aprender. A circulação entre esses dois grupos cria um coro maior.

Vocabulário útil para ouvir melhor

  • Ladainha: invocação repetida com respostas, em procissão ou na igreja.
  • Rusga: grupo que percorre ruas com cantares e danças.
  • Vira, malhão, chula: formas de dança e canto do Minho, com padrões rítmicos próprios.
  • Cantadores ao desafio: improvisadores que trocam quadras com picardia.
  • Mordomia: organização e presença das mordomas, com traje e joias tradicionais.

Saber os nomes ajuda a reconhecer momentos e a valorizar quem os mantém vivos.

Um lugar para ouvir cada instante

Quem procura um mapa sonoro pode escolher diferentes pontos da cidade.

  • Adro da igreja, manhã de festa: canto a cappella com projeção natural.
  • Margem do Lima, final da tarde: ladainha grande com respostas envolventes.
  • Praça central, noite: rusgas a cruzar, concertinas em diálogo.
  • Ruas estreitas do centro histórico: efeito de câmara ideal para quadras sussurradas.

A mudança de hora e de luz altera o som. A mesma quadra dita às 11 da manhã e às 11 da noite tem sabores diferentes.

Versos que regressam

Para terminar o dia com a música certa, há quem repita baixinho, já a caminho de casa:

Senhora da minha vida
Tende a mão ao meu povo
Que a reza que aqui deixamos
Amanhã volte de novo

E há sempre espaço para um sorriso entre amigos, com a concertina cúmplice:

Viana, tens voz bonita
Feita de mar e soalheiro
Quem canta na tua festa
Vai mais leve o ano inteiro

Entre devotos, músicos, cantadeiras e curiosos, a cidade encontra a sua afinação. A festa passa, a ressonância fica. E na próxima maré, volta a ouvi-la no mesmo lugar.

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