Importância cultural do papel do folclore vianense na romaria
O coração da festa bate ao som de concertinas, bombos e vozes que repetem refrões aprendidos em família. Em Viana do Castelo, a romaria faz-se de fé e de folguedo, e é no folclore que as duas dimensões se reconhecem e abraçam. Quem se deixa levar pelas ruas vê saias a rodopiar, lenços coloridos, ouro que brilha ao sol e sorrisos que iluminam a travessia do Lima. Não é apenas espetáculo. É linguagem, memória e pertença.
O folclore vianense não é um adorno que se coloca uma vez por ano. Ele molda a forma como a cidade se revê na festa, como os bairros se organizam em rusgas e como as geração mais novas se aproximam de uma herança que continua viva. A romaria dá-lhe espaço, tempo e voz.
Quando o cortejo etnográfico entra na avenida e os passos do vira se multiplicam, fica evidente que a cultura popular não está num museu. Vibra nos corpos e habita a rua. E é essa vibração que alimenta a romaria.
Raízes que se cantam e dançam
A devoção à Senhora d’Agonia ganha expressão pública desde o século XVIII, acompanhando o porto, as artes de pesca e a vida marítima. O folclore, com as suas danças, cantigas e trajes, cresceu nesse caldo de vida comunitária. Durante o século XX, com a afirmação dos ranchos e grupos etnográficos, o repertório musical e coreográfico foi-se fixando, sem perder o diálogo com a prática quotidiana de quem continuava a cantar nas eiras e a bailar nas festas de aldeia.
Os ensaios nas sedes de rancho, as recolhas de campo feitas por músicos e investigadores locais e as trocas entre freguesias teceram um património partilhado. A romaria acolheu-o de braços abertos, porque nele reconhece um espelho fiel do seu povo. Há sempre novidade e há sempre tradição. O segredo está na forma como se equilibra respeito pelo passado com a energia dos que chegam.
A música que puxa pela alma
Na romaria, o ouvido comanda os pés. A concertina marca o compasso, a gaita-de-foles abre alas, o cavaquinho risca o acompanhamento, o bombo chama o corpo à terra. E o coro em uníssono levanta a avenida. Petizes, avós, gente do mar e do campo, todos reconhecem o chamado.
Entre as danças mais ouvidas e vistas sobressaem:
- Vira, em múltiplas variantes locais
- Chula, com o seu marcado diálogo de pares
- Cana verde, leve e ágil
- Regadinho, de passos mais miúdos
- Malhão, de refrão contagiante
- Verde-gaio, mais cerimonioso e festivo
A música atravessa as horas e contagia a cidade. Há desgarradas ao cair da tarde, rusgas que se juntam em canto espontâneo, serenatas improvisadas diante de varandas com colchas e flores. A romaria não silencia, alterna ritmos. E o folclore dá o tempo justo aos encontros.
O traje como narrativa viva
Em Viana, vestir é contar uma história. Cada traje fala da terra, do trabalho, da festa e da fé. A multiplicidade de tecidos, bordados, cores e ouro traça uma cartografia social e afetiva. O olhar pousa nos lenços, nos aventais e nas algibeiras, e logo se percebe de que freguesia vem cada grupo, que trabalho representava aquela peça, que momento merecia tanto capricho.
Os trajes surgem no cortejo da mordomia, no cortejo etnográfico, nas procissões, e também nas danças de rua durante a noite. Não se trata de fantasia. São códigos, saberes de alfaiataria e bordado, muitas vezes transmitidos em casa, hoje apoiados por escolas e museus locais.
Traje | Elementos característicos | Momentos habituais |
---|---|---|
Lavradeira | Saia de baeta colorida, avental bordado, colete, lenço de seda, algibeira, meias trabalhadas, chinelas | Danças de rua, cortejo etnográfico |
Mordoma | Vestido escuro de seda ou lã, lenço mais sóbrio, ouro em abundância (cordões, coração, arrecadas), xale | Cortejo da mordomia, atos formais |
Noiva | Tons claros, bordados delicados, véu e peças de ouro com significado familiar | Momentos simbólicos e de representação |
Domingar | Traje de melhor uso dominical, com menos ouro e cores compostas | Procissões, participação devota |
Trabalho | Tecidos rijos, aventais lisos, lenços práticos, calçado resistente | Quadros etnográficos e demonstrações |
Pescadeira | Cores escuras, xailes, saias de lã, lenços firmes, peças adequadas à faina e ao frio | Procissão ao mar, motivos marítimos |
O ouro tem lugar de destaque. Filigrana que brilha em cordões, cruzes, medalhas, corações de Viana e arrecadas. São peças de herança, de promessa e de orgulho. Em muitos casos, representam anos de trabalho e laços familiares que passam de mão em mão. O bordado vianense traz à roupa figuras do campo, flores e motivos geométricos, pontes entre passado e presente.
A festa como palco da comunidade
O folclore vianense, na romaria, cria pontes. Une freguesias, junta vizinhos, recebe quem vem de longe. A participação não é passiva. Ensaios, costuras, reparações de instrumentos, organização de cortejos e rusgas mobilizam a cidade durante meses.
O seu papel social torna-se evidente em várias frentes:
- Coesão local: grupos e mordomias agregam pessoas de idades e origens diversas
- Transmissão de saberes: danças, letras, técnicas de bordado e joalharia aprendem-se em contexto
- Visibilidade do trabalho artesanal: ourives, bordadeiras, mestres de instrumentos encontram público e mercado
- Integração da diáspora: quem vive fora regressa e encontra no folclore a língua comum
- Educação do olhar: escolas e famílias apresentam às crianças património vivo
- Economia da cultura: alojamento, restauração, comércio e oficinas beneficiam do calendário festivo
Não é apenas entretenimento. É investimento cultural que reverbera ao longo do ano. O calendário dos grupos não termina com a romaria. Há festivais, intercâmbios, recolhas, oficinas de formação e apresentação de acervos. O Museu do Traje e outras entidades mantêm viva a investigação e a curadoria.
Entre a devoção e a celebração
A romaria à Senhora d’Agonia é também uma experiência de fé. Aqui, o folclore não substitui o sagrado. Ajuda a emoldurá-lo com respeito e beleza. A procissão ao mar, com a bênção das embarcações, envolve os pescadores e as suas famílias. Nas ruas enfeitadas com tapetes floridos, o trajeto do andor ganha uma dimensão visual que comove.
Os gigantones e cabeçudos, com origem de longa data, abrem caminho entre uma multidão sorridente, acompanhados pelos Zés Pereiras de bombo ao peito. Os músicos e dançarinos dos ranchos entram em cena no cortejo etnográfico, onde cada freguesia apresenta o melhor do seu reportório. Ao cair da noite, a luz do fogo de artificio reflete-se no Lima e a música teima em não parar. É uma sequência de quadros com o folclore como fio condutor.
O calendário cria respirações próprias. Numa manhã destaca-se a mordomia e os seus trajes de cerimónia. À tarde, a rua pertence à dança. À noite, o convívio prolonga-se em desgarradas e bailes populares. Não há fronteira rígida entre palco e plateia. Quem sabe dançar entra na roda. Quem não sabe fica a bater palmas, a aprender, a sorrir.
Autenticidade que se constrói todos os dias
Há quem pergunte: o folclore na romaria é mais espetáculo do que vivência? Em Viana, a resposta costuma estar nos bastidores. Ensaios abertos, recolhas de canções feitas com antigos tocadores, visitas às oficinas de ourivesaria e bordado, arquivo fotográfico que documenta a vida dos grupos. A autenticidade não é um ponto fixo. É um trabalho contínuo de cuidado com as fontes, com as técnicas e com as pessoas.
Equilibrar rigor e palco pede escolhas. Evitar simplificações empobrecedoras. Explicar ao público que uma saia não se usa de qualquer maneira, que o ouro se herda com cuidado e que uma dança tem regionalismos reconhecíveis. E, em paralelo, acolher a vitalidade que surge com novas gerações de músicos e bailarinos, com investigação académica e com parcerias entre escolas, museus e grupos folclóricos.
A cidade aprendeu a ver no folclore um património que não se encerra em vitrinas. Daí a importância de espaços formativos, de arquivos acessíveis e de apoio a quem preserva técnicas complexas como a filigrana e o bordado à Viana.
Educação, transmissão e futuro próximo
Muito do que se vê nas ruas nasce em salas de ensaio. Monitores voluntários, mestres tocadores, costureiras experientes e jovens curiosos formam equipas que garantem continuidade. Oficinas de concertina e cavaquinho, aulas de dança para crianças, sessões sobre histórias dos trajes ou visitas guiadas ao Museu do Traje colocam o conhecimento ao alcance de todos.
Há caminhos promissores para ampliar esta base:
- Programas escolares que integrem o folclore local com visitas e práticas
- Bolsas municipais para investigação e recolha de repertórios pouco documentados
- Residências entre grupos e artesãos, focadas em restauro de trajes e instrumentos
- Digitalização de acervos sonoros e fotográficos, com acesso público
- Circuitos de formação em técnicas de filigrana e bordado abertos à comunidade
- Parcerias com o ensino superior nas áreas de etnomusicologia, design de moda e museologia
O futuro do folclore vianense joga-se na capacidade de atrair novos praticantes e públicos, sem diluir o que o torna singular. Curiosidade, rigor e hospitalidade são os pilares.
Turismo cultural com raízes fortes
Quem visita Viana procura viver a romaria por dentro. O folclore tem aqui um efeito acolhedor. Orienta o visitante, dá-lhe pistas sobre o que está a acontecer, convida à participação respeitosa. A economia local agradece. Restaurantes servem rojões à minhota com arroz de sarrabulho, tendeiros apresentam doçaria conventual e as bolas acabadas de fritar fazem fila na rua. Oficinas de filigrana mostram a paciência de cada fio.
Para evitar a uniformização que tantas festas populares sofreram noutros lugares, a cidade aposta em programação que valoriza a especificidade local. O cortejo etnográfico não é um desfile genérico. É uma afirmação de identidade. E isso tem impacto na qualidade da experiência de quem chega.
Desafios à vista e respostas possíveis
A vida cultural enfrenta tensões inevitáveis. Envelhecimento de praticantes em algumas áreas, custos de manutenção de trajes autênticos, pressão do calendário turístico, logística de grandes eventos em espaço urbano. Acresce a necessidade de proteger repertórios de usos comerciais errados e de incentivar condições dignas para ensaios e apresentações.
Algumas respostas estão em curso ou ao alcance:
- Fundos dedicados à conservação de trajes e ao restauro de peças antigas
- Protocolos com oficinas e escolas para formar novas bordadeiras e ourives
- Espaços de ensaio com boa acústica e horários compatíveis com quem trabalha
- Regulamentos claros para o uso de símbolos locais, evitando apropriações abusivas
- Programação que distribua fluxos de público pela cidade, reduzindo pressão em zonas sensíveis
- Promoção de circuitos fora da época alta, com visitas temáticas a museus e sedes de grupos
Manter a escala humana é essencial. É na proximidade, no olho no olho, que o folclore ganha verdade. A romaria precisa dessa medida.
Rituais que pedem compasso
Alguns momentos pedem quietude. A procissão ao mar convoca silêncio e gratidão. O folclore, nesses momentos, sabe recolher-se para deixar a fé falar. Depois, volta a aquecer a rua. O equilíbrio entre devoção e celebração dá o tom certo à festa. Essa sabedoria coletiva, cultivada ao longo de gerações, é um dos segredos mais bonitos de Viana.
O cortejo da mordomia mostra trajes de elegância rara, com mordomas que parecem ter saído de retratos antigos. O cortejo histórico-etnográfico dá espaço a cada freguesia para mostrar os seus ofícios, colheitas e cantigas. Gigantones iluminam as crianças, cabeçudos fazem rir, e os Zés Pereiras batem o compasso que todos guardam no corpo. A certa altura, percebe-se que a cidade inteira se tornou palco.
Um pequeno guia para quem quer viver a festa
- Chegar cedo aos cortejos. Os melhores pontos estão junto às curvas das avenidas, onde a dança se prolonga.
- Respeitar espaços de devoção. Fotografar com discrição e sem bloquear o percurso das procissões.
- Procurar as ruas com tapetes floridos e os bairros onde ensaiam as rusgas à tarde.
- Visitar o Museu do Traje para compreender a lógica dos trajes antes de ver o desfile.
- Assistir a uma oficina de filigrana e a outra de bordado. A paciência do artesão tem outro sabor quando se vê ao vivo.
- Comer com tempo. Caldo verde e vinho verde, rojões e papas de sarrabulho. A cidade cozinha a sua identidade.
- Comprar local. Peças pequenas de filigrana, lenços e bordados feitos na região dão futuro a quem mantém as técnicas.
- Aprender um passo simples de vira. Vai dar jeito quando a roda se abrir.
Pequenos gestos fazem a diferença: cumprimentar, perguntar, agradecer. A romaria vive de encontros.
O valor que fica quando as luzes se apagam
Quando o último fogo se reflete no Lima e as concertinas arrumam a noite, permanecem imagens e sons que teimam. Fica a memória de um coro afinado por vozes de vários sotaques, fica o brilho do ouro a marcar uma história de trabalho e afeto, ficam as saias que rodopiaram sem cansaço. Acima de tudo, fica a noção de que a cultura não é apenas aquilo que se vê. É o que se faz em conjunto.
O folclore vianense, na romaria, prova que tradição e presente podem andar de mãos dadas. Ajuda a cidade a dizer quem é, sem pedir desculpa nem cair em caricatura. É raiz e é convite. Um convite aberto a quem queira entrar na roda, bater palmas no compasso certo e levar consigo um pedaço de Viana no coração.