Quando começaram as festas d’agonia na Póvoa

Haverá sempre alguém que jura ter visto “as festas d’agonia” no areal da Póvoa, de rede ao ombro e barco engalanado. A costa escreve memórias no sal, e as memórias, ao contrário das actas municipais, misturam lugares e nomes. Vale a pena colocar a pergunta com calma: quando começaram, afinal, as festas d’agonia e o que tem a Póvoa a ver com isso?

O que chamamos “festas d’agonia”

A designação aponta de imediato para Nossa Senhora d’Agonia, devoção que ganhou projeção em Viana do Castelo. É a grande romaria minhota de agosto, associada à vida do mar e às comunidades de pescadores. O calendário, as procissões e a estética dos trajos populares tornaram-na referência nacional.

A Póvoa de Varzim, vizinha de tradições marítimas fortíssimas, celebra no mesmo verão outras invocações de matriz semelhante. Há procissão ao mar, andores que cruzam a barra, promessas de quem parte e regressa. A proximidade geográfica e simbólica criou pontes. Daí a confusão frequente: muita gente usa “agonia” como sinónimo de festa grande do mar, mesmo quando a invocação oficial local é outra.

Em resumo: a romaria de Nossa Senhora d’Agonia é vianense. A Póvoa tem a sua própria teia de festas marítimas, algumas em agosto, que partilham significados e imagens.

As primeiras notícias em Viana do Castelo

Para quem procura datas, há marcos que se repetem em estudos locais, boletins paroquiais e crónicas oitocentistas:

  • Culto organizado no século XVIII, com capela e irmandade dedicadas a Nossa Senhora d’Agonia.
  • Registos da romaria já no final do século XVIII, com menções a procissões e promessas ligadas ao mar e à pesca.
  • Consolidação no século XIX, à boleia da imprensa regional, do movimento associativo e de um calendário urbano que integrou a romaria como momento alto de agosto.
  • No século XX surgem elementos que hoje associamos de imediato à festa: cortejo histórico e etnográfico, gigantones e cabeçudos, mordomia, programação musical, fogo-de-artifício sobre o Lima e a procissão ao mar.

A pergunta “quando começaram” obtém, em Viana, uma resposta convincente: a romaria está documentada desde o último terço do século XVIII e intensifica a sua forma festiva durante o século XIX, ganhando expressão moderna no século XX.

E na Póvoa, onde entra a “agonia”?

Entra pela vizinhança cultural e pelo calendário. Agosto é mês de festas marítimas em toda a faixa litoral entre Espinho e Caminha. Na Póvoa, o coração devocional do verão bate noutros altares:

  • Nossa Senhora da Lapa, guardiã dos pescadores poveiros, com igreja setecentista e longa tradição de promessas ligadas à faina.
  • Nossa Senhora da Assunção, com celebrações no meado de agosto.
  • São Pedro, forte marca identitária poveira, ainda que festejado em junho, com bairros, rusgas e rivalidades saudáveis.

Durante o século XIX e boa parte do XX, a Póvoa desenvolveu procissões ao mar, bênçãos de embarcações e rituais que exaltam o vínculo com a barra e o Atlântico. A iconografia, a música de banda, o aparato cénico e até o calendário próximo de 15 de agosto criaram uma sobreposição no imaginário. Dizer “festas d’agonia” para falar de uma festa marítima de agosto, vista da Póvoa, tornou-se, para muitos, uma forma coloquial, não um rótulo oficial.

Isto não diminui nada. Pelo contrário, ilumina um traço bonito da cultura ribeirinha: partilha-se uma gramática comum de fé, mar e festa, cada porto com o seu nome e as suas datas.

Linha temporal comparada

A tabela abaixo não pretende substituir o arquivo. Ajuda a fixar ordens de grandeza e a pôr lado a lado dois universos próximos.

Período Viana do Castelo, Nossa Senhora d’Agonia Póvoa de Varzim, festas do mar
Século XVII Devocionalidade mariana extensa na região, bases para capelas e confrarias Comunidade pesqueira em crescimento, práticas de invocação mariana difusas
Século XVIII Capela e culto d’Agonia ganham forma; registos de romaria no final do século Igreja da Lapa edificada na segunda metade do século; promessas dos mareantes
Século XIX Romaria estruturada no calendário urbano; imprensa noticia cortejos e fogos Procissões ao mar e bênçãos de barcos aparecem nas crónicas locais; Assunção e Lapa em destaque
Início do XX Consolidação da festa moderna, cortejos e mordomia Ritos marítimos formalizados, aumento da participação popular e das bandas
Meados do XX Procissão ao mar integra programa; festa com dimensão nacional Procissão ao mar ganha escala, coexistindo com S. Pedro e Assunção
Finais do XX e XXI Internacionalização turística, programação multimodal Valorização patrimonial, reinterpretações cénicas e memórias de bordo

Note-se o paralelismo. Embora a matriz seja comum, a titularidade e o nome não se confundem.

O que dizem jornais e actas

Quem gosta de datas concretas encontra pérolas na imprensa regional. Folheando periódicos do século XIX, aparecem relatos de veraneantes que partiam do Porto para “as festas de Viana” em agosto, às vezes com passagem pela Póvoa. Em sentido inverso, há referências a grupos poveiros que, tendo família em Viana ou negócio em Caminha, marcavam presença na romaria d’Agonia, trazendo de lá práticas e cantigas.

As actas municipais e os boletins paroquiais de Viana reforçam o peso económico e logístico da romaria a partir de meados de oitocentos. Em paralelo, as atas de irmandades poveiras dão conta de despesas com arcos, iluminações, velas e embarcações engalanadas para as festas da Lapa e da Assunção. O calendário cruza-se e a linguagem das festas aproxima-se.

Há também pequenos incidentes saborosos: discussões sobre a ordem das bandas, diálogos sobre segurança na barra durante a procissão, debates sobre a cor das colgaduras. Pormenores que revelam uma comunidade viva, onde a festa é assunto sério.

Como circulam costumes entre portos vizinhos

A costa norte funciona como um corredor cultural. Ideias viajam de barco, de comboio e de boca em boca.

  • O comboio encurta distâncias a partir do final do século XIX, facilitando deslocações para romarias de renome.
  • Famílias de pescadores trabalham sazonalmente noutros portos. Levam consigo devoções e maneiras de organizar procissões.
  • A imprensa popular publica letras de modas e marchas. Muitas são adaptadas noutros lugares, criando parentescos inesperados.
  • Fotógrafos ambulantes e postais ilustrados cristalizam imagens de “festa do mar” com elementos replicáveis: arcos de buxo, colares de contas, bandeiras salgadas.

A expressão “agonia” ganha estatuto quase genérico na fala de muitos, sobretudo quando se fala de agosto, mar e fé. Não é método académico, é oralidade. E a oralidade tem a sua própria lógica.

O que faz de agosto um mês tão forte

Há uma confluência de fatores:

  • Marés de verão, que tornam mais seguras certas operações rituais, como a bênção ao largo.
  • Migração sazonal de quem trabalha no interior, regressando à terra natal durante as férias.
  • Ciclo litúrgico com a Assunção a 15 de agosto, que carrega simbolismo mariano.
  • Mercado de veraneio, com visitantes a multiplicarem a escala dos eventos.

Viana capitaliza isto sob a invocação d’Agonia. A Póvoa expressa-o através da Lapa, da Assunção e do repertório associativo local, com as rusgas de S. Pedro ainda na memória fresca do fim de junho. O tecido é o mesmo, o bordado é diferente.

Perguntas diretas, respostas claras

  • Existe oficialmente “festa d’Agonia” na Póvoa? Não. A designação oficial “Nossa Senhora d’Agonia” é de Viana do Castelo. Na Póvoa, as grandes festas marítimas têm outras invocações, embora a conversa de rua por vezes use “agonia” como atalho para “festa grande do mar”.
  • Então quando começaram as festas d’Agonia? Em termos documentais, no final do século XVIII em Viana do Castelo, com consolidação ao longo do século XIX e crescimento notável no século XX.
  • Há procissão ao mar na Póvoa? Sim, integrada noutros quadros devocionais, com forte presença da comunidade piscatória e simbologia muito próxima da de Viana.
  • Poveiros participam na Agonia de Viana? Historicamente, sim. As ligações familiares e laborais entre portos vizinhos tornaram essas presenças frequentes.

Momentos marcantes em Viana do Castelo

Para quem aprecia cronologias e peças de património imaterial, a romaria vianense sedimentou um conjunto de ícones:

  • Desfile da Mordomia e riqueza do traje à vianesa.
  • Gigantones e cabeçudos a anteceder os cortejos.
  • Cortejo histórico e etnográfico, com representação dos ofícios e das freguesias.
  • Procissão solene e procissão ao mar, onde a devoção pisa a água.
  • Fogo no Lima e noite longa de agosto, com milhares de pessoas na cidade.

Viana transformou a sua festa numa síntese visual do Minho. Ao fazê-lo, passou a “ensinar” outras terras, inclusive a Póvoa, no modo de apresentar o mar em chave festiva.

Na Póvoa, o mar tem outras falas

A geografia da Póvoa molda a sua liturgia popular. A barra, a enseada, a memória do bacalhau e da sardinha, as lanchas e as marcas do casario piscatório dão à festa um timbre próprio. Há sinais que qualquer poveiro reconhece:

  • A devoção na Igreja da Lapa e o cuidado com o “andor do mar”.
  • Os bairros mobilizados para S. Pedro, com rivalidades que fazem nascer arcos, marchas e estandartes.
  • A procissão ao mar como acto comunitário de gratidão e pedido, com embarcações engalanadas e famílias de olhos molhados.

Chame-lhe Lapa, Assunção, S. Pedro. O sentimento é o mesmo que também se vive em Viana, com nome distinto.

Uma rota de agosto para quem gosta de festas do mar

Fica um itinerário prático, pensado para poucos dias, sem atropelos:

  • Dia 1, manhã: passeio pela marginal da Póvoa, visita à Igreja da Lapa. Tarde: conversa com quem regressa da lota, para ouvir estórias de procissões antigas.
  • Dia 2, tarde: Vila do Conde, com o seu património conventual e a proximidade física ao estuário. Noite: assistir a ensaios de bandas ou ranchos.
  • Dia 3, todo o dia: Viana do Castelo, com subida ao Monte de Santa Luzia para leitura panorâmica da cidade. À tarde, tempo de romaria, cortejos se coincidirem com o calendário.
  • Dia 4, manhã: regresso à Póvoa para ver de perto uma bênção de barcos ou uma eucaristia de festa.

Intercale com paragens em feiras, uma sardinhada bem tirada e conversas nos cafés onde a história se conta sem pedir licença a nenhum arquivo.

Como responder, de forma rigorosa, à pergunta inicial

  • Se o foco é estritamente “festas d’Agonia”, a resposta aponta para Viana do Castelo, finais do século XVIII, com robustez crescente no século XIX e fisionomia moderna no século XX.
  • Se a pergunta pretende saber quando começaram as grandes festas do mar na Póvoa, a linha aponta para a segunda metade do século XVIII, com a Igreja da Lapa como pólo, e consolidação de procissões marítimas entre finais do século XIX e o século XX.
  • Se o que se quer é perceber porque se confunde o nome, a explicação está na vizinhança, no calendário de agosto e na linguagem popular que, muitas vezes, simplifica.

O rigor não anula a poesia. Ajuda apenas a chamar cada festa pelo seu nome.

Pistas de leitura e lugares a visitar

  • Arquivo Municipal de Viana do Castelo e Núcleo Museológico da Romaria da Agonia.
  • Arquivo Municipal da Póvoa de Varzim, actas de irmandades e acervos fotográficos de meados do século XX.
  • Boletins paroquiais da Igreja da Lapa, na Póvoa, e da paróquia de Nossa Senhora d’Agonia, em Viana.
  • Jornais regionais do século XIX e primeiras décadas do XX, onde se registam programas, bandas, iluminárias e incidentes saborosos.
  • Trabalhos de etnografia costeira sobre procissões ao mar no litoral minhoto e duriense.

Ao caminhar por estas salas, ganha-se a nitidez das datas e o cheiro do linho, do buxo e da madeira molhada.

Um olhar que junta arquivo e cais

A história das festas do mar não cabe numa única capela nem numa só designação. É um mosaico, tal como o convés de uma lancha com tábuas de idades diferentes. Viana deu à expressão “agonia” um corpo conhecido, uma assinatura. A Póvoa respondeu a partir da Lapa, da Assunção e de S. Pedro, com os seus próprios timbres e ritmos.

Se um dia, em agosto, ouvir os bombos a distante e vir bandeiras a dobrar a esquina da rua, não pergunte logo onde está a “agonia”. Primeiro escute. O som dirá se está em Viana, na Póvoa ou num ponto intermédio dessa costa onde o mar e a fé se falam há séculos. Depois, sim, procure o programa e o nome da santa. A festa já começou.

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