A influência do folclore na identidade de Viana

Viana do Castelo tem uma forma muito própria de se reconhecer. O que une bairros, freguesias, gerações e quem está fora a trabalhar no estrangeiro é um conjunto de práticas que se ouvem, se vestem e se dançam. Chama-se folclore, mas é mais do que espetáculo. É memória partilhada, é economia local, é educação cívica, é política do quotidiano.

Raízes que contam de onde vimos

O folclore vianense nasce do encontro entre o mar e os campos. O porto, as fainas, o comércio, a agricultura de minifúndio, as feiras e as romarias teceram uma cultura musical e gestual que passou de pais para filhos sem grande alarde. Aprendia-se de ouvido, imitava-se o passo no terreiro, bordava-se ao serão.

No início do século XX, os ranchos começaram a organizar-se, a fixar cantigas e coreografias, a recolher trajes e a registrar letras. Houve momentos de cristalização e outros de renovação. Entre a musealização e a vida real, Viana encontrou uma via própria, onde as recolhas convivem com a prática quotidiana.

Hoje, os grupos continuam a ser porta-vozes de um mundo rural que não desapareceu por completo. Mudou de escala, ganhou novas funções sociais, passou a dialogar com a cidade e com o turismo, mas não perdeu a sua centralidade simbólica.

A música que põe a cidade a respirar

O som de Viana é percussão de bombos, resposta de concertinas, cavaquinhos incansáveis. Os Zés Pereiras abrem caminhos, marcam ritmos de procissões e desfiles. O povo responde com palmas, com refrões que todos sabem, com aquela alegria contagiante que enche a rua.

Modalidades como o vira, o malhão, a chula, a cana-verde e as desgarradas não são apenas formas musicais. São códigos de sociabilidade. A chamada e resposta cria interação, a letra pica miolos com humor, o compasso convida à roda.

Instrumentos que dizem muito:

  • Concertina, versátil e presente em quase todas as rusgas
  • Cavaquinho e viola braguesa, base harmónica e rítmica das modas
  • Bombos e caixas, motor das arruadas e da festa
  • Reco-reco, ferrinhos e pandeiretas, pormenores que dão cor e balanço

A música, tão ligada ao corpo, marca o tempo social. Marca colheitas, marca promessas, marca casamentos. E faz comunidade.

Dança como arquivo vivo do corpo

A dança minhota trabalha dois registos: vigor e delicadeza. Há saltos e giros, mas também gestos pequenos que lembram tarefas de campo, cortejos amorosos, cumplicidades.

O círculo, a dupla, a passagem de um par ao outro e a forma como a roda se abre para acolher os mais novos davam e continuam a dar regras de convívio. Um arquivo vivo do corpo, onde aprender é fazer, repetir, afinar.

E quando a praça se abre para o vira, não há turismo que resista. Quem vê quer participar. Viana sabe receber.

O traje e o ouro, estética e identidade

O traje de Viana é um cartão de visita. Vermelhos vibrantes, azuis profundos, aventais bordados com motivos florais e agrícolas, lenços com padrões que se reconhecem à distância. E o ouro. Muito ouro. Em camadas, em fios trabalhados, com o Coração de Viana a brilhar no peito.

Há vários trajes, com funções próprias: lavradeira, domingueiro, noiva, mordoma. Cada um fala de status, de momentos, de usos. O bordado de Viana, com desenho específico e técnica apurada, manteve oficinas e famílias inteiras ao longo de décadas.

O ouro, peça por peça, é herança e poupança. É afeto convertido em património tangível. É também trabalho de ourives que guardam segredos de ofício e inventam soluções para o presente, ligando tradição a novas estéticas. Designers locais pegam nos códigos, reinterpretam-nos, e criam peças que circulam entre o desfile etnográfico e a passerelle.

A romaria que marca o calendário

A Senhora d’Agonia é muito mais do que um ponto alto do verão. É a data que estrutura ensaios, costuras, limpezas de instrumentos, redes de voluntariado. É quando o cortejo histórico-etnográfico dá palco às freguesias, quando as mordomas brilham, quando a cidade inteira se revê no desfile.

Há momentos que ficam na pele:

  • Procissão ao mar, com barcos engalanados e promessa paga com sal e vento
  • Tapetes floridos na avenida, uma obra coletiva que perfuma a cidade
  • Zés Pereiras a abrir caminho, gigantones e cabeçudos a dançar nos interstícios
  • Cortejo das mordomas, onde o ouro fala alto e o orgulho é assumido

Turistas chegam, sim. Mas a festa é de quem ali vive e dos que regressam para não perder o fio à meada.

Onde se aprende e como se transmite

O folclore de Viana não sobrevive por milagre. Tem escolas informais dentro dos próprios ranchos, tem ensaios abertos, tem trabalho de recolha em arquivos familiares, tem programas no Museu do Traje e nas bibliotecas. Professores e mestres de dança organizam oficinas para miúdos e graúdos, técnicas de bordado passam de mesa para mesa, os músicos partilham toques e variações.

Ganham importância as parcerias com escolas do concelho, onde projetos de território incluem sessões sobre traje, música e artesanato. Quando a criança veste pela primeira vez o lenço e sente o peso do ouro de fantasia, abre-se um canal afetivo que a liga ao lugar.

A tecnologia também ajuda. Gravações de áudio e vídeo preservam modas que estavam a perder-se, plataformas digitais permitem comparar variações, cursos online explicam pontos de bordado. Não substituem o convívio, mas alargam o alcance.

A diáspora que leva Viana no peito

Paris, Luxemburgo, Suíça, Toronto. Há ranchos de vianenses a ensaiar em salões paroquiais e associações de emigrantes, há festas da Senhora d’Agonia em versão transatlântica, há concertinas que atravessaram oceanos dentro de malas.

A diáspora acrescenta camadas. Nasce um português de Viana com sotaques cruzados, que canta o vira com a mesma garra de quem ficou. Nas festas comunitárias, o traje sai do armário e ganha uma vida que conforta saudades e constrói pertença para os filhos e netos.

Essa ida e volta traz também inovação: músicos convidados, trocas com outras tradições, projetos colaborativos que devolvem à cidade novas leituras do mesmo repertório.

Cidade, economia e sustentabilidade cultural

O folclore move pessoas e move dinheiro. Costureiras, bordadeiras, ourives, produtores de instrumentos, organizadores de eventos, técnicos de som e luz, guias e mediadores. A cadeia de valor é extensa, ainda que nem sempre visível.

Quando bem cuidado, o folclore dá emprego qualificado e cria marcas territoriais fortes. O Bordado de Viana tem certificação, o ouro de filigrana ganha novas linhas de produtos, as lojas especializadas vendem para o mundo. A restauração e a hotelaria sentem os efeitos dos grandes eventos, mas também do ciclo anual de ensaios e encontros.

Importa, no entanto, evitar que tudo se resuma a foto e souvenir. A autenticidade constrói-se com tempo, conhecimento e remuneração justa. Não é incompatível com o turismo, desde que o centro permaneça no respeito por quem faz o trabalho.

Um mapa de funções sociais

A cultura popular cumpre papéis distintos e complementares. Ver o conjunto ajuda a tomar decisões mais sólidas.

Elemento do folclore Funções identitárias Dimensão económica Riscos se mal gerido
Música e cantigas Coesão em festas e rituais, transmissão oral Cachets, aulas, gravações, festivais Comercialização excessiva, perda de repertório local
Dança e coreografia Regras de convívio, memória do corpo Workshops, espetáculos, turismo cultural Coreografias estereotipadas sem contexto
Traje e ouro Símbolo visual de pertença Artesanato, ourivesaria, moda Imitadores de baixa qualidade, exploração do símbolo
Bordado e artes manuais Saber-fazer, paciência, comunidade Oficinas, vendas certificadas Industrialização sem critérios, descaracterização
Rituais da romaria Ligação espiritual e cívica Serviços, alojamento, mediações Redução a evento mediático, pressão logística
Gastronomia associada Hospitalidade, memória familiar Restaurantes, produtos locais Estandardização para turista, perda de sazonalidade

Olhar para esta tabela com atenção é um convite a desenhar políticas públicas e iniciativas privadas mais lúcidas, onde o valor cultural e o valor económico se reforçam mutuamente.

Instituições que seguram a casa

O Museu do Traje de Viana do Castelo é mais do que um local de exposições. É um centro de documentação, de formação e de mediação. A sua ação ajuda a fixar critérios de qualidade, a partilhar histórias por detrás das peças, a evitar clichés.

Associações de grupos folclóricos, escolas e autarquia convergem em projetos que organizam o calendário e apoiam quem faz. Programas de residência para artesãos, concursos que valorizam o bordado e o desenho, encontros de concertinas e bombos, publicações que registam variantes de modas. Tudo isto conta.

Quando o poder público assume a cultura popular como ativo estratégico, a sociedade civil responde com energia. Viana é prova disso.

Tradição e criação, um diálogo fértil

Pisar as mesmas pedras não significa repetir sempre o mesmo. Músicos jovens cruzam o vira com linguagens atuais, dando vida a projetos com qualidade artística e respeito pelo original. Designers trabalham com bordadeiras de longa data, transformando motivos tradicionais em peças contemporâneas.

Na fotografia e no vídeo, novos olhares ampliam a perceção do traje e dos rituais, sem folclorizar. A cidade recebe instalações artísticas que partem do Coração de Viana e do lenço, enquanto os comerciantes reinventam montras com referências subtis.

Quando a experimentação nasce do conhecimento, o resultado tem densidade. E isso atrai públicos exigentes, dentro e fora.

Educação patrimonial com ambição

Há terreno fértil nas escolas. Projetos interdisciplinares podem cruzar história local, educação visual, música e cidadania. Do lado dos ranchos, mentores preparados para acolher turmas, explicar escolhas de repertório, mostrar as costuras, desmontar e montar um traje ao vivo.

Recursos educativos de qualidade fazem diferença: fichas sobre instrumentos, vídeos que ensinam passos básicos do vira sem caricatura, cadernos de bordado de acesso livre. E uma rede de visitas orientadas que leve as turmas a ensaios, oficinas e museus.

O impacto é visível. Jovens que entram por curiosidade ficam por orgulho, e multiplicam histórias para contar.

Como apoiar no dia a dia

Gestos simples, efeitos duradouros:

  • Comprar bordado certificado e ouro de oficinas locais
  • Contratar grupos folclóricos com cachet justo e condições de apresentação adequadas
  • Divulgar eventos com informação rigorosa, evitando estereótipos
  • Participar em oficinas e cursos, e levar amigos
  • Apoiar projetos de arquivo e digitalização de recolhas familiares
  • Dar tempo e espaço a quem ensaia e ensina

Os resultados somam, no bolso de quem trabalha e no coração de quem assiste.

Património que se move, gente que se encontra

O folclore em Viana não é vitrine parada. Mexe com a paisagem sonora, com a forma como nos vestimos em dias especiais, com as rotas que fazemos pela cidade, com as alianças que construímos entre freguesias e gerações.

Quando a praça enche para um vira e as vozes se alinham no refrão, a identidade deixa de ser um conceito abstrato e passa a ser músculo, pele e sorriso. É nessa vibração que Viana se reconhece, se organiza e projeta confiança no futuro.

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