Amar a terra onde se nasceu: orgulho cultural
Há lugares que não nos largam. Ficam no sotaque, no temperamento, na forma como cumprimentamos os vizinhos e como lemos o céu antes de sair à rua. Amar a terra onde se nasceu não é um gesto de bandeira em punho, nem uma pose de postal ilustrado. É uma prática diária, discreta, feita de memórias partilhadas e de escolhas concretas. Em Viana do Castelo, esse amor tem cheiro a maresia, luz de rio, som de concertina e brilho de ouro ao peito. E, ainda assim, não vive encostado ao passado. Sabe olhar o Atlântico e imaginar futuro.
Pertencer com os pés assentes na cidade
Há uma diferença entre gostar de um lugar e sentir que se pertence a ele. O primeiro é romântico, o segundo é uma relação viva, com deveres e alegrias. Pertencer significa:
- Cuidar do espaço comum, do coreto à calçada, do abrigo de pesca à árvore centenária
- Conhecer os nomes, das ruas às plantas, das pedras dos Paços do Concelho aos ventos que chegam de Carreço
- Participar, aparecendo nas festas, nas romarias, nos ensaios do rancho, nas reuniões de bairro
- Transmitir, contando histórias aos mais novos, ensinando receitas, cantando modas antigas
- Inovar, dando uso contemporâneo a ofícios, abrindo portas a quem chega e traz perguntas novas
Em Viana, este pertença circula entre o Lima e o monte. O santuário lá no alto acompanha o movimento da cidade cá em baixo. O apito de um navio faz parte da banda sonora local. E a Praça da República continua a ser o ponto de encontro, com o chafariz como testemunha.
Sinais de uma alma vianense
O orgulho vianense tem símbolos muito nítidos, que cabem numa fotografia mas respondem a um universo de práticas e valores.
- O mar e o rio que definem a identidade e moldam ofícios
- O traje à vianesa, com as suas variantes e o ouro em cascata
- A romaria da Senhora d’Agonia, síntese de fé, arte popular e sentido de comunidade
- A filigrana com o coração de Viana, traço delicado e resistente
- A dança e a música do Minho, onde o Vira ganha corpo e alegria
- O trabalho de estaleiro e de porto, com muitos nomes de família ligados ao metal e à madeira
É nesta confluência que se percebe como tradição e contemporaneidade podem caminhar lado a lado. O mesmo lugar que guarda um trajeto de mordomas com quilómetros de ouro também recebe projetos de energia offshore. Não há contradição. Há continuidade.
A romaria que suspende o tempo
Em agosto, Viana confirma que festa popular pode ser arte total. Durante dias, a cidade reveste-se. Há costuras que se afinam, ensaios que se prolongam, promessas que saem do peito para a rua. O desfile da Mordomia é um dos momentos mais falados, mas a maratona de detalhes começa muito antes: nos bordados guardados em arcas, no polir do ouro herdado, na escolha dos lenços e das saias.
A procissão ao mar, com barcos engalanados, é uma das imagens mais fortes. Não é uma encenação turística. É gratidão do trabalho ao alimento e ao risco. Pela Ribeira, as ruas recebem tapetes floridos, e o traço de cada vizinhança conta uma história. É nesse desenho conjunto que a cidade se reconhece.
A quem assiste de fora, a festa pode parecer apenas espetáculo. A quem participa, é compromisso. As comissões organizam, as bandas tocam, os ranchos dançam, os comerciantes decoram montras, os artesãos esmeram-se. A escala é grande, a alma é de bairro.
Oficinas, mãos e matéria
O orgulho de origem alimenta-se daquilo que se faz com as mãos. Em Viana, há um vocabulário próprio, dito com a textura do linho, o brilho do ouro, o peso do ferro.
- Filigrana: fios diminutos de ouro ou prata desenham corações, arrecadas, cruzes. A técnica pede paciência e olhos treinados. Entre oficina e montra, o percurso é longo e feito de muito silêncio
- Bordado: o pano ganha expressão, seja num lenço de promessas, seja num avental de sabedoria doméstica. Cada ponto é linguagem
- Carpintaria de ribeira e metalomecânica naval: os estaleiros marcam a paisagem e a biografia de muitas famílias. Hoje há renovação tecnológica, mas a sensibilidade ao mar persiste
- Conserveira e comércio de peixe: outro sotaque da economia local, que guarda sabores com tempo e respeito
A quem chega e pergunta o que é o coração de Viana, vale a pena responder devagar. É símbolo, é estética e é memória coletiva. Tem raízes em devoções antigas, mas tornou-se também um sinal civil de pertença. Não se trata apenas de ostentação, mas de um código afetivo.
Património urbano e natural que se conversa
A cidade tem um centro histórico coeso e respirado. A Praça da República é um compêndio de pedra trabalhada, com o edifício da Misericórdia em conjunto com os antigos Paços do Concelho e o chafariz renascentista. A poucos passos, surgem ruas estreitas, lojas antigas, o Museu do Traje com cores e texturas que nos falam de trabalho e festa.
O rio Lima é a grande avenida líquida. Permite passeios largos e convida a olhar a Ponte de Eiffel, obra de engenharia elegante que transporta memórias de partidas e regressos. Mais adiante, o navio Gil Eannes, antigo hospital da frota bacalhoeira, está ancorado como museu. Visitar o seu interior é entrar no corredor de uma história portuguesa com cheiro a bacalhau e coragem.
No alto, o santuário de Santa Luzia oferece uma vista que muitos guardam como primeira imagem de Viana. O funicular, discreto e eficiente, transforma a subida num pequeno ritual. O monte protege e aponta ao mesmo tempo.
A orla costeira, com praias como Cabedelo, Afife, Carreço e Praia Norte, alterna areais longos com rochedos e moinhos de vento. Ali, o Atlântico é amplo e o vento escreve o seu nome na areia.
Uma mesa que conta onde estamos
Os sabores de Viana são um mapa. O Minho responde com verdes aromáticos, o mar acrescenta iodo e textura, as receitas circulam entre freguesias.
Prato ou Doce | Onde saborear | Época/Contexto | Notas sensoriais |
---|---|---|---|
Caldo verde | Tascas do centro histórico | Todo o ano | Fumo do chouriço, couve cortada fina |
Polvo à lagareiro | Restaurantes de Amorosa e Afife | Outono e inverno | Azeite generoso, batata a murro |
Sardinha assada | Zonas ribeirinhas | Verão, Santos Populares | Grelha viva, pão e pimento assado |
Arroz de sarrabulho | Casas minhotas | Manhãs frias | Miúdos, cominhos, textura reconfortante |
Lampreia do Lima | Casas de referência | Final de inverno | Sabores profundos, ritual à mesa |
Rabanadas e mexidos | Doçaria tradicional | Natal | Açúcar e canela, memórias familiares |
Bolas de berlim do Natário | Rua Manuel Espregueira | Fila sábia | Cremosas, mornas, experiências de infância |
Há petiscos que merecem nota de rodapé: petinga frita, caldo de nabos, papas de sarrabulho em tigela de barro, broa estaladiça. E há vinho verde da região, com acidez que limpa o palato e puxa conversa.
Gente que parte e volta
Viana sabe de viagens. Há séculos de partidas, com destinos no bacalhau e em continentes sem fim, e há décadas de emigração que levou apelidos e saudades para França, Alemanha, Canadá, Venezuela, África do Sul. Em cada verão, os que partiram regressam por uns dias e reatam rotinas: um café na Praça, um mergulho no Cabedelo, uma visita a Santa Luzia, um brinde com os de sempre.
As casas regionais no estrangeiro mantêm laços, organizam encontros, ensinam danças, fazem jantaradas com caldo verde e rojões. O orgulho vianense não se evapora com um avião. Muitas vezes, até se adensa longe de casa.
Economia com os olhos no horizonte
O porto de mar e a proximidade do Atlântico trouxeram indústria, logística e oficinas. Os estaleiros, com novo fôlego, adaptaram-se a encomendas e tecnologias atuais. O cluster das energias renováveis offshore ganhou espaço, com plataformas eólicas a nascer no mar e a testar capacidades locais.
Ao lado, o comércio tradicional mantém identidade e diferenciação. Um alfarrabista de rua secundária, uma ourivesaria de mãos antigas, uma tasca com carapaus de escabeche, uma mercearia com enchidos e queijos de produtores que conhecem pelo nome.
As escolas do Instituto Politécnico de Viana do Castelo contribuem com diplomados em áreas técnicas e sociais, e há projetos que aproximam estudantes da comunidade, dos museus aos bairros, da inovação social aos laboratórios de materiais. É aí que a cidade ganha velocidade sem perder sotaque.
O ouro que fala
Quem olha de fora vê opulência. Quem conhece por dentro reconhece linguagem. O ouro à vianesa é um arquivo portátil de gestos, proteção, família. Os corações, as arrecadas, as cruzes, os colares espessos que passam de mãe para filha. Não são apenas joias. São um modo de lembrar quem se é, um seguro de autonomia num mundo onde, durante muito tempo, a mulher tinha poucas armas além da sua astúcia e do seu trabalho.
O trabalho de filigrana pede calma e rigor. A oficina é um laboratório de milímetros. Desenhar, soldar, enrolar fios até criar uma peça quase etérea. E depois, vestir o ouro com traje, dar-lhe a luz e a música da rua. É difícil ficar indiferente quando a Mordomia avança. O brilho não é vaidade gratuita, é um idioma partilhado.
Viver tradição sem fechar portas
A tentação existe: usar o passado como trincheira. Mas a cultura que respira não é muralha, é praça. O orgulho vianense cresce quando se deixa interpelar, quando recebe bem, quando transforma curiosidade em aprendizagem.
Práticas simples que ajudam:
- Visitar ateliers e comprar diretamente a artesãos
- Participar em oficinas de filigrana ou bordado para perceber o tempo que cada peça carrega
- Frequentar ensaios de rancho e grupos corais, nem que seja como ouvinte
- Envolver crianças em pequenos roteiros pelos museus e pelas praias, com caderno e lápis
- Apoiar comércio de bairro, pedir pelos nomes, agradecer o serviço
- Trazer amigos de fora e apresentar-lhes o que se come e dança sem folclorizar a vida
A cultura não se arquiva. Vive no presente.
Roteiro de 48 horas com olhos e paladar
Sábado de manhã, café curto e pastel no centro. Uma visita ao Museu do Traje, demorar um pouco diante dos tecidos. Passear até ao Lima, seguir o passadiço, sentir a brisa. Subir a Santa Luzia pelo funicular e, lá em cima, procurar as formas do estuário, a curva do rio que parece descansar antes do mar.
Almoçar peixe grelhado em zona ribeirinha. Tarde com as mãos no ouro, numa visita a uma oficina. Fim do dia nas dunas do Cabedelo, com uma toalha e um livro. Jantar de safio ou polvo. Depois, praça iluminada e conversa comprida, talvez um concerto ou uma dança improvisada.
Domingo mais calmo, com missa ou passeio, consoante as crenças. Mercado local para fruta e pão. Travessia para Carreço e Montedor, moinhos ao alcance, cheiro a pinho. Um petisco final, despedida à beira-rio. E a promessa de voltar, que é outra forma de não sair.
Calendário afetivo de uma cidade
A vida de Viana tem ritmos, cores e sonoridades que se repetem e renovam. Um resumo possível cabe nesta tabela, que não pretende ser exaustiva, apenas sugestiva:
Mês | Ritmo da cidade | Sabores a procurar |
---|---|---|
Janeiro | Brumas no Lima, romarias pequenas | Papas de sarrabulho, cozido |
Fevereiro | Lampreia em conversa longa | Lampreia à bordalesa, vinho verde |
Março | Lumes mansos e dias a crescer | Polvo no forno, brássicas novas |
Abril | Páscoa, procissões discretas | Folares, cabrito da serra |
Maio | Quintais em flor, ensaios de rancho | Sardinha começa a chegar |
Junho | Santos, fogueiras, manjericos | Sardinha assada, caldo verde |
Julho | Praia cheia, vento a pedir vela | Arroz de peixe, saladas de tomate |
Agosto | Senhora d’Agonia, cidade a pulsar | Rojões, bolas de berlim |
Setembro | Luz dourada, regresso calmo | Uvas, broa, papas doces |
Outubro | Feiras de outono, castanhas a estalar | Caldo de nabos, rojões |
Novembro | Chuva miúda, conversas à mesa | Papas de sarrabulho em tigela |
Dezembro | Natal de rua, presépios, casas cheias | Rabanadas, mexidos, aletria |
Cada família acrescenta datas e segredos. É assim que a cidade se torna uma soma de muitas cidades.
Educação, museus e memória ativa
Amar onde se nasceu passa por conhecer melhor. Em Viana, há museus que atuam como escolas fora da escola. O Museu do Traje organiza atividades para crianças e adultos, explicando processos, materiais, simbologias. O navio Gil Eannes propõe visitas onde a técnica e a aventura se cruzam. O Centro de Mar promove exposições e conversas. E as bibliotecas municipais mantêm um programa rico, com leitura, cinema e oficinas.
As escolas superiores do IPVC dialogam com este tecido cultural, com projetos de intervenção urbana, investigação aplicada, estágios que aproximam alunos de instituições locais. A cidade aprende consigo mesma quando academia e território se escutam.
Tecnologia, vento e água
O futuro de Viana não precisa de apagar o seu passado. Pode alimentá-lo com soluções que respeitam o lugar. O vento que enche as saias das ondas é o mesmo que faz girar pás num mar cada vez mais inteligente. No largo do porto, fala-se de logística, digitalização, processos limpos. O rio pede monitorização e cuidado, as praias exigem gestão. E há start-ups que nascem de ofícios antigos, redesenhando peixes em conserva, relançando linho com design, digitalizando bordados para novas aplicações.
A cidade tem escala humana e capital natural. Esta combinação é rara e muito valiosa se bem cuidada.
Um orgulho que se abre
Falar de orgulho local não é construir fronteiras mentais. É criar raízes que permitem ramos. Quando um visitante pergunta, o vianense conta. Quando alguém chega para ficar, a cidade acolhe, sem apagar as suas marcas, convidando a aprender as nossas. E quando a crítica é justa, há escuta e vontade de acertar.
Há uma forma simples de verificar a saúde deste orgulho: ver como se trata o chão comum. Uma rua limpa, um jardim sem lixo, uma praia sem plásticos, um respeito manso pelas filas e pelas bicicletas. Nisso, Viana pode continuar a dar o exemplo.
Pequenas práticas com grande efeito
Para quem quer viver este amor todos os dias, aqui ficam ideias de fácil execução:
- Um caderno de bairro, onde se escreve o nome de quem nos atende bem e o que aprendemos com ele
- Uma ida regular aos ensaios de um grupo cultural, mesmo como observador
- Uma conversa por semana com alguém mais velho, gravada com consentimento, para arquivar memórias
- Uma compra mensal diretamente a um artesão
- Um passeio a uma praia fora de época, com recolha de micro-lixo e olhos no horizonte
- Um gesto de voluntariado nas festas da freguesia
Os lugares devolvem o que lhes damos. Em Viana, isso é especialmente visível.
Manhãs de nevoeiro e tardes compridas
Há dias em que a cidade acorda com véu de nevoeiro no Lima. A luz filtra-se, os sons parecem mais próximos. O relógio da torre marca o compasso, o padeiro cruza a rua com sacos de pão, o rio move-se como se respirasse. Mais tarde, o sol abre caminho e a cidade ganha brilho. Grupos juntam-se num coreto, alguém toca uma modinha antiga, as crianças riscam o chão com giz.
Ao fim da tarde, a maré sobe e baixa e o Atlântico lembra que estamos à beira de uma massa de água infinita. O vento é fresco, o sal fica na pele, a conversa desenha-se sem pressa. Amar a terra onde se nasceu é isto, um gesto quieto e firme, repetido, que nos dá casa por dentro. Em Viana, esse gesto tem rosto, música e lume. E continua.