Descubra as histórias de amor que nasceram nas festas d’agonia
Há cidades que guardam um pulso próprio quando chega agosto. Viana do Castelo é uma delas. O ar mexe com o toque dos bombos, as saias rodadas recortam o chão, o ouro brilha ao sol e o rio Lima devolve luz a tudo o que acontece na margem. No meio das rusgas e do cheiro a caldo verde e sardinha, há algo que passa de ouvido a ouvido: quantos namoros começaram aqui, nas Festas d’Agonia?
Esse rumor tem fundamento. Não se trata apenas de música, procissões e fogo de artifício; trata-se de encontros. Ao longo de décadas, o arraial serviu de cenário a olhares que se cruzaram, passos de dança que desenharam promessas, cartas trocadas em segredo e casamentos que hoje fazem parte da história de muitas famílias.
É sobre isso que falamos: amores que nasceram com o toque dos Zés Pereiras, o compasso das concertinas e a maré que entra pelo porto adentro.
Um cenário que chama as pessoas umas às outras
A festa é um dispositivo social, uma espécie de laboratório vivo onde tudo conspira para aproximar. O cortejo histórico-etnográfico, as mordomas com o ouro ao peito, os gigantones, os cabeçudos e o tapete de sal são mais do que tradição; funcionam como linguagem comum. É mais fácil puxar conversa quando todos partilham o mesmo deslumbramento.
Os espaços fazem o resto. A Praça da República torna-se ponto de encontro. O Campo d’Agonia, junto ao santuário, lateja com retinas e risos. A marginal convida a caminhar sem pressa, em direção à ponte de ferro sobre o Lima, e a noite traz o fogo no rio que segura cada par de olhos durante minutos intermináveis.
Quando os ritmos populares começam, as barreiras caem. O vira dá licença a um “danças comigo?” que noutro dia poderia parecer deslocado. Não é só a coreografia. É o código. Quem chega de fora percebe rapidamente que aqui se dança junto, que a roda tem lugar para mais um.
Encontros ao som do vira
Cada geração tem a sua forma de entrar na festa. Há quem vá pela fé, quem vá pela música, quem vá pelo convívio. O efeito nas relações é transversal.
- As rusgas que cruzam os bairros e freguesias aproximam rapaziada e visitantes, tacitamente autorizando convites de dança e trocas de sorrisos.
- Os arraiais noturnos encurtam as distâncias. A música popular e as concertinas criam pontos de contacto imediatos.
- A Procissão ao Mar, com as embarcações engalanadas, instala uma emoção que, partilhada lado a lado, fica gravada. Não é raro que alguém ofereça um casaco, um lenço, um lugar no parapeito do cais. Pequenos gestos que abrem conversas.
Há também a cumplicidade de quem volta todos os anos. Aquela rapariga que os amigos apresentaram num verão, o rapaz que fotografava o fogo junto ao coreto, a estudante que veio com a tuná e acabou a aprender o vira à pressa. Reencontros tornam-se inevitáveis e, com sorte, desejados.
Cinco histórias que ficaram
Histórias de amor em festa não são iguais entre si. Umas nasceram de um olhar roubado, outras de um desencontro que insistiu em juntar.
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- Maria, mordoma da Meadela, trazia ao peito o ouro da família. António, pescador, tinha acabado de regressar de uma campanha longa. Viram-se no adro do santuário. Ele ofereceu-lhe uma sardinha assada num pedaço de broa e riram do gesto sem cerimónia. Dançaram duas vezes nesse dia. Casaram no ano seguinte. Durante décadas, Maria ia às Festas com a mesma argola de ouro, lembrando quem lha colocou no dedo.
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- O pós-25 de Abril trouxera mudanças e, com elas, amigos a regressar de França. Paula e René conheceram-se numa tasca improvável, depois do cortejo. Ela ditava traduções de provérbios minhotos, ele respondia com trocadilhos em francês. Foram a Santa Luzia ao fim da tarde, viram a cidade e o mar, falaram até a noite cair. A distância entre Toulouse e Viana parecia insuperável; afinal, as cartas semanais e duas viagens por ano chegaram para segurá-los. O casamento foi em agosto, para coincidir com a festa.
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- Filipa era professora recém-colocada em Viana. André tocava concertina num grupo folclórico de Darque. Ela aproximou-se para perguntar sobre as diferenças entre o traje de lavradeira e o à vianesa, ele explicou mais do que ela tinha perguntado. Saíram para um caldo verde, voltaram para o baile e, quando o fogo no rio começou, partilharam silêncio e um casaco. Dois anos depois abriram uma pequena escola de música e dança tradicional. Hoje, ajudam adolescentes a aprender passos que, quem sabe, serão o início de outras histórias.
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- Joana vinha com a família desde pequena, mas nessa noite decidiu ir com amigos para a marginal. Miguel, engenheiro, tinha voltado de Lisboa para “matar saudades”. Um copo caiu, brindaram por acidente, e a conversa seguiu leve entre os gritos que anunciavam cada foguete. Trocaram contactos no fim, trocaram mensagens durante meses. O primeiro beijo? No mesmo banco, um ano depois, com a mesma banda a tocar o Vira de Viana.
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- No rescaldo de um período atípico, Catarina, fotógrafa, decidiu documentar a festa. Tiago guiava um barco na Procissão ao Mar. Cruzaram olhares na doca, mas foi na edição das imagens, dias depois, que a conversa começou. Reencontraram-se na Feira de Artesanato no ano seguinte. A história tem poucas páginas ainda, mas já tem um álbum.
Para quem gosta de ver datas, lugares e pequenos símbolos, vale a pena organizar alguns destes apontamentos.
Ano | Nomes | Onde começou | O que ficou no bolso | Hoje |
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1958 | Maria e António | Adro do santuário | Pedaço de broa | Netos que vestem traje no cortejo |
1977 | Paula e René | Tasca junto à Praça | Guardanapo com provérbio | Casa com vista para o Lima |
1999 | Filipa e André | Baile no Campo d’Agonia | Bilhete do grupo folclórico | Escola de música e dança tradicional |
2013 | Joana e Miguel | Marginal, banco junto ao coreto | Ficha de café | Fins de semana repartidos entre Viana e Lisboa |
2022 | Catarina e Tiago | Doca, Procissão ao Mar | Fotografia impressa | Álbum de trabalho e de vida em construção |
Não são personagens de romance inventado. São recortes reconhecíveis em dezenas de famílias que, quando se juntam à mesa, acabam inevitavelmente na mesma conversa: “Lembras-te daquela noite de agosto?”
A linguagem do lenço e do ouro
Em Viana, o amor tem sinais próprios. O lenço, bordado à mão, conta histórias numa caligrafia de linhas e cores que preferem dizer com doçura aquilo que a boca nem sempre ousa. Há quem guarde ainda o lenço dos namorados do Minho, escrito com pequenos erros ortográficos e símbolos de corações entrelaçados. Entregá-lo é gesto sério, recebê-lo com um sorriso é praticamente um contrato.
O ouro é outro capítulo. O peso do colar, as arrecadas, a cruz de Malta, tudo fala de heranças e de continuidades. Não se trata de ostentação, mas de pertença. Quem entra na roda percebe que o brilho tem rituais. Há histórias que começaram com um comentário sobre uma peça específica, uma avó que fez a encomenda, uma promessa. Conversas assim aproximam sem pressa, respeitando os passos da tradição.
Há também o convite para dançar, com etiqueta própria. Um olhar, um passo dado à frente, a mão estendida. Muitos casais contam que foi essa simplicidade que selou o primeiro instante. E, curiosamente, o momento em que a música pára por uns segundos cria um silêncio cheio que, em festa, quase nunca é incómodo. É ali que se trocam os primeiros “como te chamas?”, “vives onde?”, “voltamos a dançar?”
O país que volta a casa
As Festas d’Agonia têm um efeito centrípeto. Emigrantes de França, Suíça, Luxemburgo, Alemanha marcam férias para agosto e sincronizam agendas de família. Filhos e netos de vianenses que cresceram noutras paragens regressam por uma semana, descobrem o sotaque que os pais lhes transmitiram e um conjunto de códigos que passam a ser deles também.
Esse regresso reencaixa peças no puzzle das relações:
- Relações à distância ganham uma janela de proximidade que alimenta o ano inteiro.
- Novas relações nascem com uma barganha implícita de quilómetros e horários, mas com a vantagem de um ponto de encontro fixo no calendário.
- Famílias que não se viam juntam-se nas varandas, partilham caldo verde depois da meia-noite e apresentam amigos aos amigos.
Os encontros têm, por vezes, um lado de fronteira: misturam o urbano com o rural, o cosmopolita com o local. É precisamente no abraço dessas diferenças que muitas histórias crescem.
Lugares onde o coração acelera
Para quem gosta de mapas, aqui ficam alguns pontos onde tudo costuma acontecer. Não é ciência exata, é cartografia afetiva.
- Praça da República: bom para recomeçar conversas interrompidas pelo cortejo.
- Campo d’Agonia: centro magnético do baile, da gastronomia e dos reencontros.
- Marginal e ponte Eiffel: melhor zona para o fogo no rio, para quem quer partilhar silêncio.
- Doca e cais: momento da Procissão ao Mar, com emoção aberta e olhos húmidos.
- Jardim da Marina: respiro entre números de palco, ideal para primeiras conversas mais calmas.
- Escadório de Santa Luzia: vista ampla, frases curtas, tempo suspenso.
Cada lugar tem a sua hora. Há quem prefira o fim da tarde, quando a luz amacia; outros vivem da madrugada, quando a música abafa qualquer timidez.
Como a festa transforma um encontro em compromisso
Nem tudo depende do acaso. Há um conjunto de hábitos que tornam a transição do “olá” para algo mais sólido mais natural. O primeiro é o ritual social do baile. Dançar de roda permite que a conversa nasça sem pressão. O segundo é a partilha do alimento: caldo verde, rissóis, malassadas, broa com chouriço. Comer juntos cria confiança sem esforço.
O terceiro está no próprio calendário da festa. Quem marca “vemos-nos amanhã à mesma hora” tem um pretexto legítimo para repetir o encontro. A repetição, durante três ou quatro dias, sedimenta presenças e cria uma base. Quando a festa termina, o que fica não é um contacto perdido num telemóvel, é uma apreensão íntima do outro criadas em instantes muito concretos: aquela música, aquele cheiro, aquele lugar.
Manual de bolso para quem procura romance em agosto
Não há garantias, mas há boas práticas. Para quem vai com o coração disponível, isto pode ajudar:
- Vá com tempo. Chegar em cima da hora tira-lhe atenção e presença.
- Dance. Mesmo que sinta que não sabe, a roda ensina.
- Respeite o corpo e o espaço do outro. Um convite pode ser recusado, e isso também é parte da festa.
- Fale de coisas que têm chão: família, ofícios, histórias locais. A festa dá muito tema.
- Observe. A etiqueta muda consoante o momento e o sítio.
- Tenha um gesto concreto. Oferecer um lenço simples, um postal da cidade, um copo de água depois do baile cria memória.
- Marque um reencontro durante a própria festa. Quatro dias permitem construir algo que resiste ao fim.
E, se vive longe, tenha uma estratégia para o depois. Partilhar fotos, combinar a próxima vinda, agendar uma chamada. O romance precisa de calendário e de intenção.
Os bastidores que ajudam o amor
Muito do que parece espontâneo foi desenhado para aproximar. As associações locais ensaiam meses, os grupos folclóricos acolhem curiosos, as comissões organizam palcos e horários que favorecem encontros. Os comerciantes montam bancas que se tornam pontos de parada, os bombeiros ajudam a gerir as multidões com um sorriso, os Zés Pereiras acertam batidas que fazem o corpo querer mexer.
A festa cria, portanto, uma coreografia alargada onde todos são figurantes e protagonistas. Nesse ambiente, falar é mais simples, rir é mais alto, e uma frase ganha eco. Quem me dera que a vida tivesse sempre este pano de fundo, ouvi uma vez na fila para uma febra. Não tem, por isso aproveita.
Quando o fogo no rio acende promessas
Há uma história que muitos contam de forma parecida, com os pormenores a variar. O fogo no rio começa, o reflexo das cores abana na água do Lima, e duas pessoas estão lado a lado. O som quase apaga a conversa, por isso falam ao ouvido. Ninguém consegue disfarçar a emoção de ver o céu rasgar-se em luz, e o toque de um braço no outro parece mais natural do que noutro dia qualquer.
Foi assim com o Duarte e a Soraia, em 2006. Vinham em grupos diferentes, colaram-se por acaso ao corrimão da marginal, partilharam um saco de tremoços que alguém passou para a frente. No instante em que as palmeiras dispararam sobre a ponte, ele disse sem pensar que aquilo pedia um desejo. Ela, que achava piegas tudo o que cheirava a superstição, sorriu e fechou os olhos por um segundo. Desejou que aquela noite tivesse continuação. Teve. Um ano depois, ele levou um lenço bordado com uma frase curta e um coração torto. Ela guardou-o no bolso do avental e furou a regra de esperar. Disse que sim ainda antes do último foguete.
O presente também se escreve online
Hoje, os encontros têm prólogo digital e epílogo em fotografias. As redes mostram trajes, ores, cartazes, e as pessoas trocam mensagens antes de se cruzarem na Praça da República. Isto não rouba magia; amplia. O primeiro contacto pode acontecer num comentário sobre uma peça de filigrana, um vídeo de uma rusga, uma fotografia do tapete de sal. O segundo, no baile. O terceiro, no café da esquina com uma broa acabada de sair.
Há quem organize grupos para ir dançar, partilhe dicas de onde ver melhor a Procissão ao Mar, identifique-se em imagens antigas de jornais locais. Cada clique é uma pequena ponte sobre o Lima. Quando chega o dia, a cidade acolhe os percursos digitais e dá-lhes chão.
As festas dentro da festa
A grande romaria tem sempre acontecimentos paralelos que funcionam como pequenas salas de estar. As tertúlias sobre trajes, a exposição de fotografia que revisita a história da festa, as oficinas de bordado que explicam pontos e padrões. Em espaço mais pequeno, a conversa roda com facilidade.
Para quem procura afinidades, estes momentos são preciosos. Falar de um livro encontrado num alfarrabista local, comentar uma música que a avó cantava, perguntar a origem de um motivo de bordado, tudo isto revela interesses e faz aparecer cumplicidades. E, sem querer, cria uma rede que segura o encontro para lá da euforia do arraial.
Ainda uma história, para fechar os olhos e ouvir o som
A avó da Ana costumava dizer que o amor gosta de ser chamado pelo nome em agosto. Numa dessas tardes, já com o calor a pedir sombra, a Ana subiu o escadório de Santa Luzia com o Rui. Tinham-se conhecido na noite anterior num baile improvisado junto ao coreto. Subiam devagar, a falar pelo meio de risos e de silêncios. Lá em cima, a cidade estendia-se em azuis e verdes, o Lima brilhava como um fio de prata esticado no mapa.
Ele tirou do bolso um bilhete amarrotado com uma frase escrita com letra apressada: “Se amanhã dançarmos outra vez, fico.” Dançaram. Ele ficou. E todos os anos, quando a primeira caixa soa e o primeiro foguete risca o céu, voltam a subir aquelas escadas. Só para confirmar que a vista continua a mesma e que o coração, sem pedir licença, continua a ritmar ao som da festa.