Descubra as tradições que fazem de viana uma cidade com alma

Chegar a Viana do Castelo é entrar num compasso próprio. A maré do Lima dita o ritmo, as ruas de pedra guardam passos antigos, e as varandas floridas parecem agradecer o sol. Não é só uma cidade, é uma constelação de rituais, gestos e vozes que se repetem e se renovam. Há lugares onde a tradição vive como tema de conversa ou fotografia; aqui vive no corpo, no calendário, no paladar e no som dos bombos que se sente no peito.

O que dá corpo à alma vianense

A identidade de Viana assenta num triângulo muito claro: festa, ofício e devoção. Tudo o que vemos no mês de agosto, no traje, no ouro, nas danças, nos barcos engalanados, nos bordados de cores vivas, foi moldado por séculos de trabalho no mar e no campo, por irmandades e por famílias que passam saberes de geração em geração.

  • A festa vem do encontro. Nas rusgas, nos cortejos, nos arraiais e nas janeiras.
  • O ofício dá mãos e método à beleza. Bordar, lavrar, ourivesar, construir barcos, tocar gaita e concertina.
  • A devoção liga tudo. À Senhora d’Agonia, ao mar que alimenta e exige respeito, ao tempo de cada colheita.

Não é uma vitrina do passado. É vida vivida.

Romaria da Senhora d’Agonia: coração de agosto

Em agosto, Viana acende-se. A Romaria da Senhora d’Agonia é uma das maiores festas populares do país e, para os locais, é assunto de pertença. Começou ligada à proteção dos pescadores e cresceu com o envolvimento de toda a cidade.

Momentos que marcam:

  • Procissão ao mar e bênção das embarcações. As traineiras e os botes vestem bandeirolas, o andor atravessa a multidão e o rio enche-se de fé e cor.
  • Cortejo histórico e etnográfico. Uma radiografia viva do Alto Minho: alfaias agrícolas, trajes de diferentes freguesias, carros de bois, gigantones, cabeçudos e Zés Pereiras.
  • Cortejo da Mordomia. Centenas de mulheres em traje de lavradeira, ouro ao peito, bordado rigoroso, passo firme e sorriso orgulhoso.
  • Tapetes de sal. Ruelas transformadas em pintura efémera. Horas de trabalho que, num instante, se tornam caminho para a procissão.
  • Fogo no rio. O reflexo das cascatas de luz no Lima, a ponte e o casario a servirem de cenário, famílias inteiras a olhar para cima.

Há música em cada esquina, cheiro a farturas e caldo verde, gaiteiros que percorrem quarteirões, e aquela sensação de que a cidade se abraça a si própria.

Calendário de rituais ao longo do ano

Viana não vive apenas em agosto. As freguesias e as coletividades mantêm o ciclo anual cheio. O quadro abaixo dá uma ideia dos momentos mais aguardados:

Mês Tradição Onde ganha vida Notas de quem é da terra
Janeiro Cantares de Reis e Janeiras Paróquias e associações Portas abertas, vozes em coro, figos secos e vinho para aquecer
Fevereiro/Março Entrudo Ruas e praças Mascarados, sátira local, caldo e chouriça para recuperar forças
Quaresma Serração da Velha Bairros e aldeias Um boneco que se queima, riso e moral da história partilhada
Maio Maias Janelas e varandas Ramos de giesta amarela para afastar o azar
Junho Santos Populares Arraiais de bairro Sardinha na brasa, manjericos e marchas
Agosto Romaria d’Agonia Cidade inteira A festa maior
Setembro/Outubro Vindimas e feiras Arredores e mercados Cestos, concertinas e prova de vinho novo
Novembro S. Martinho Largos e quintais Magusto, castanha assada, jeropiga
Dezembro Natal e presépios Igrejas e lares Presépios artesanais, concertos corais

Cada celebração tem a sua etiqueta, o seu som e os seus sabores. E todos têm espaço.

Traje à vianesa: linguagem bordada

O traje de Viana é mais do que roupa bonita de festa. É gramática têxtil, com variações rigorosas entre lavradeira de festa, de domingar, de trabalho, noiva e mordoma. O vermelho vivo de um lenço, o azul profundo de uma saia, o avental bordado, a algibeira em forma de coração, o colete ajustado. Cada peça tem função, cada ponto tem desenho e intenção.

Os bordados de Viana distinguem-se por motivos florais, aves e ramos, e por uma paleta vibrante que não pede licença. O traço é limpo e de grande legibilidade, o que explica porque ganha leitura imediata, mesmo ao longe. A técnica pede paciência e mão treinada. Em muitas casas, as avós iniciam as netas com um pano simples onde o ponto se aprende antes de passar para a saia ou para o colete.

O ouro completa o conjunto. Arrecadas, cordões, colares com contas, brincos de rainha e, claro, o coração de Viana. A filigrana, trabalhada com fios finíssimos de ouro, desenha rendas sólidas. Ver uma mordoma com várias voltas de ouro é contemplar património familiar a desfilar, muitas vezes emprestado entre vizinhas, com responsabilidade partilhada.

Peças do traje e o que dizem:

Peça Sinal Detalhe
Lenço Identidade de freguesia Nó, cor e bordado variam, contando origem
Saia Ocasião Tecidos mais ricos para festa, padrões mais simples no trabalho
Algibeira Praticidade e símbolo Guarda pequenos objetos, muitas vezes com formato de coração
Avental Cuidado e vaidade Bordado caprichado, alinhado com a saia
Ouro Prosperidade e pacto Sinal de poupança, afeto e promessa

O Museu do Traje, na Praça da República, tem trabalho cuidadoso de recolha e mostra, com exemplares que permitem ver os detalhes bem perto. A visita muda a forma como se olha para quem desfila nos cortejos.

Música, dança e alegria de rua

Ninguém confunde o som dos Zés Pereiras. Bombo marcado, caixas que arrastam o passo, gaita-de-fole que chama para a esquina seguinte. No Minho, e em Viana com voz própria, a dança tem nomes que ficam no ouvido: vira, chula, malhão. A coreografia está no corpo de muita gente, porque se aprende cedo nas escolas, nos ranchos e em casa.

Em dias de festa:

  • Rusgas atravessam bairros e praças, com pares a avançar e a recuar em diálogo.
  • As concertinas picam o ritmo, o cavaquinho adensa a malha, o coro popular fecha o círculo.
  • Os gigantones e cabeçudos entram na roda e despertam risos e fotografias.

Não é raro ver três gerações de uma mesma família a rodar ao mesmo tempo. É isso que dá escala humana ao espetáculo.

O rio, o mar e as mãos que constroem

Viana olha o mar de frente e o rio de perto. A devoção à Senhora d’Agonia nasceu do medo e do respeito de quem partia e de quem ficava à espera. A procissão ao mar é a imagem mais clara dessa ligação. Barcos pintados e engalanados, redes arrumadas, luz a cortar a água, apitos e buzinas a responderem ao som dos sinos.

A construção naval é outra peça do puzzle. Os estaleiros estiveram ligados à cidade durante décadas e deixaram uma cultura de precisão e desafio. O navio-hospital Gil Eannes, hoje transformado em museu, é testemunho de um capítulo ímpar da faina do bacalhau e da capacidade técnica local.

Nas igrejas, os ex-votos marítimos contam histórias de promessas pagas. Peças simples, marinheiros em miniatura, tempestades parábolas, nomes de barcos que já não existem, mas que continuam presentes no agradecimento escrito em madeira ou tela.

Oficinas, filigrana e desenho paciente

A arte de ourives não se apressa. A filigrana pede fio fino, mão firme e muita concentração. Em Viana, os ourives convivem com as bordadeiras e com quem sabe trabalhar a madeira, o linho, o lato. Há uma rede silenciosa de oficinas e pequenas empresas que mantém técnicas antigas, com soluções atuais para quem usa.

  • Associações de bordados asseguram formação e certificação.
  • Designers locais criam peças que dialogam com o traje sem o copiar, respeitando códigos.
  • Lojas de rua exibem peças trabalhadas que prendem a atenção de quem passa.

A tradição vive do detalhe. E o detalhe precisa de tempo.

Sabores que contam histórias

A mesa vianense tem voz. O bacalhau ganha lugar especial, com o famoso bacalhau à Viana, que chega à frigideira depois de marinar, repousa em cama de cebolada e batata, e pede um copo de vinho verde da sub-região do Lima, com a acidez elegante da casta Loureiro. A lampreia, quando o rio permite e o calendário dita, é assunto sério, em arroz ou à bordalesa.

Pratos que fazem parte da memória:

  • Arroz de sarrabulho à moda do Minho
  • Rojões com papas de sarrabulho
  • Caldo verde fumegante, cebolinho a perfumar
  • Polvo e pescada frescos, consoante a lota manda

Na doçaria, a torta de Viana tem fãs fiéis. Há também biscoitos e bolos de receita antiga, muitas vezes ligados a conventos e a lares que não anunciam, servem. No fim, fruta das hortas próximas. E café, claro.

Como participar com respeito

A festa partilha-se melhor quando todos ajudam a cuidar. Pequenas atitudes têm impacto.

  • Pedir autorização antes de fotografar alguém em traje.
  • Não pisar os tapetes de sal e respeitar as barreiras improvisadas.
  • Dar prioridade a residentes em momentos de maior afluência, sobretudo em atos religiosos.
  • Evitar impedir a passagem dos cortejos para captar o melhor ângulo.
  • Comprar local. Bordados, filigrana, louça e doçaria de casas da cidade mantêm as oficinas vivas.

Este cuidado não retira entusiasmo. Dá-lhe profundidade.

O que não falha numa primeira visita

Com tanta oferta, ajuda ter uma lista curta para orientar o olhar. Vale por um dia inteiro ou por um fim de semana.

  • Praça da República ao amanhecer, quando a cidade ainda espreguiça
  • Museu do Traje para entrar nos pormenores
  • Subida a Santa Luzia, pelo elevador ou pelas escadas, para ver a cidade, o rio e o mar alinhados
  • Marginal ribeirinha ao fim da tarde, com paragem para um copo de vinho verde
  • Lojas de bordados e ourivesarias históricas, onde o tempo corre a outro passo
  • Se for agosto, assistir ao cortejo da Mordomia e ao fogo no rio

Se houver mais tempo, um salto até às praias próximas e às freguesias que guardam parte do património imaterial que depois se revela no centro.

Viana pela voz de quem a faz

Olhar a cidade de frente é também escutar quem a constrói diariamente. A mordoma que herdou o ouro da avó, mas que continua a atualizar a algibeira. O gaiteiro que ensina crianças a respirarem com o fole. A bordadeira que anota variantes de pontos num caderno com capa de tecido, para não perder nada. O pescador que liga a devoção à Senhora d’Agonia à maré certa e à paciência dos dias.

Esta multiplicidade cria uma rede de significado. Quando a cidade se reúne, não há uma única história. Há muitas, com um fio comum.

Um mapa afetivo de artes e lugares

Viana permite uma leitura por ofícios. Uma tarde de oficina vale muito.

  • Bordado: observar o desenho no papel vegetal, a escolha das linhas, a tensão certa no bastidor.
  • Filigrana: reparar no lume, na solda, no gesto mínimo que dá forma a um coração.
  • Construção naval: percorrer o Gil Eannes e perceber a logística de um hospital flutuante.
  • Música: assistir a um ensaio de rancho ou a uma arruada de Zés Pereiras.

Mapa possível, por quarteirões:

  • Praça da República e ruas adjacentes para museu, lojas e cafés
  • Zona ribeirinha para passeios longos e vista para o rio
  • Santa Luzia para visão aérea e silêncio breve
  • Bairros que em agosto se tornam palcos de rusgas e arraiais

Cada ponto fala com os outros.

Viana em família, a sós ou em grupo

A cidade presta-se a ritmos diferentes. Em família, os cortejos encantam miúdos. A subida a Santa Luzia desafia, mas compensa, e os gigantones ficam na memória. A sós, a manhã junto ao rio e uma tarde de museus dão espaço para escuta. Em grupo, a mesa ganha dimensão e as rusgas pedem participação.

Sugestão de 24 horas:

  • Manhã: café na Praça da República, Museu do Traje, passeio pelas lojas de bordados
  • Almoço: bacalhau à Viana e vinho verde
  • Tarde: marginal, visita ao Gil Eannes
  • Fim de tarde: subida a Santa Luzia
  • Noite: se for tempo de festa, arraial e concertina; se não, passeio pelo centro histórico iluminado

Com 48 horas, acrescentar oficinas, praias e uma incursão a uma freguesia com tradição bem ativa.

Cultura que se renova sem perder o norte

A tradição mantém-se quando encontra campo novo. Em Viana, há projetos que cruzam bordado com design, ouro com materiais inesperados, música de raiz com arranjos que cabem em palcos de hoje. As escolas trabalham a transmissão, os grupos folclóricos abrem portas, as associações recolhem arquivos e partilham.

O equilíbrio está no respeito pelos códigos que fazem o traje ser traje, a dança ser dança, o bordado ser bordado. O resto é espaço de criatividade. Vê-se isso nas montras, nas redes, nos palcos improvisados, nos festivais que abraçam o popular e o contemporâneo.

Noite de agosto à beira-rio

A certa altura, a luz baixa, os bombos silenciam por um instante, e só se ouvem passos à procura do melhor lugar. O rio está liso, as janelas enchem-se de gente e há um murmúrio que sobe. O primeiro foguete rasga o céu e o reflexo abre-se em cores no Lima. Cheira a maresia e a açúcar quente. Ao lado, uma família comenta o cortejo, recorda a avó que já não desce, aponta o lenço da neta que dançou pela primeira vez. Viana vive nessas conversas. E em cada bomba que ecoa, em cada bordado que leva meses a concluir, em cada barco que acena à passagem do andor.

Ao fim, ninguém tem pressa. A cidade demora-se, como quem sabe que a festa continua no dia seguinte, no ensaio da concertina que ainda se ouve ao longe, no pano de ponto que fica pousado à espera de mais uma flor. A alma de Viana está aí, inteira, disponível a quem chega e a quem fica.

Voltar para o blogue