Fascínio das concertinas nas festas d'agonia

Quem já sentiu a vibração das primeiras notas de uma concertina nas ruas de Viana do Castelo, em pleno agosto, sabe que há ali mais do que música. Há cumplicidade. Há memória que regressa, pé que bate no empedrado, gargalhada solta, olhos que brilham à luz dos arraiais. Entre o som vivo das palhetas e as rimas certeiras dos cantares ao desafio, a festa ganha corpo e respira. É este diálogo entre instrumento e voz que cria o centro do arraial, aquele ponto onde até quem passa apressa o passo para ficar.

A romaria mexe com a cidade e com quem a visita. As concertinas chamam, os cantadores respondem, as rusgas aproximam-se, e de repente a rua torna-se palco. Não há marcação oficial para este encontro, porque o melhor dele é nascer por si, junto ao largo, à porta da tasca, na esquina onde cabem mais dois pares a dançar. E é assim que a tradição se mantém viva: com o pulso das pessoas.

O que torna a concertina tão irresistível

A concertina é um instrumento de sopro livre, parente do acordeão, mas com uma personalidade muito própria. É diatónica e bissonora: ao abrir e ao fechar o fole produz notas diferentes, o que imprime aos ritmos minhotos uma pulsação nervosa e festiva. Quem ouve percebe logo que aquilo mexe com o corpo, mesmo antes do pensamento se organizar.

A mecânica é simples na aparência, exigente na prática. À direita, as fileiras de botões dão as melodias, em fileiras afinadas em pares de quintas, como Ré-Sol ou Sol-Dó. À esquerda, baixos e acordes, a base rítmica que empurra o compasso. Muitos instrumentos trazem registos que retiram as terceiras aos acordes, para abrir o campo harmónico entre maior e menor sem prender a cor. Esta flexibilidade agrada a quem passa do vira à chula sem querer mudar a alma do som.

Porque é que tanto se cola à festa:

  • Ataque rítmico instantâneo, com acento que convida à dança
  • Volume suficiente para comandar um largo inteiro sem eletricidade
  • Timbre cortante, que atravessa o bulício e fica por cima das conversas
  • Portabilidade e robustez, ideais para um cortejo que se move de rua em rua

A concertina não é só acompanhamento. Tem voz e opinião. Entre marcações, ponteios e repiques, faz comentários musicais às quadras dos cantadores, cria suspense antes do verso final, e fecha as respostas com pequenas faíscas de virtuosismo que fazem sorrir os que conhecem a linguagem.

Da feira ao palco: como o desafio se arma

Os cantares ao desafio são duelos poéticos improvisados, musicais e sociais, praticados a dois ou mais cantadores. É conversa cantada, em redondilha, de rima clara e astúcia viva. Um atira uma ideia em quadras, o outro apanha a deixa e devolve com trocadilho, malícia controlada e inteligência do momento. A plateia arbitra com palmas e risos, e a concertina segura o terreno.

Nesta tradição, há etiquetas que todos reconhecem, mesmo quando ninguém as enuncia:

  • Quem tira a moda define o tom e o andamento, e os restantes entram onde a concertina abre espaço
  • Não se interrompe uma quadra; corta-se pela música, nunca pela voz
  • O humor pica, mas não rasga; o objetivo é elevar o jogo, não ofender
  • Quem chega novo pede a vez com um gesto e aguarda o ciclo
  • O fecho de cada volta é do cantador que iniciou a roda, a concertina confirma com uma cadência mais marcada

A beleza está no risco. Não há papel, nem teleponto. O cantador ouve, mede o público, lê o parceiro de frente, e confia na memória coletiva de formas poéticas e melodias que se partilham há gerações. A concertina ajuda a pensar, oferecendo repousos e chamadas, criando pequenas ilhas onde a palavra respira. É um pingue-pongue finíssimo entre fricção e respeito.

Ritmos minhotos que acendem o arraial

Para o ouvido destreinado, tudo parece festa. Para quem já dançou meia noite seguida, cada toada tem o seu passo, o seu eixo. A concertina domina esta gramática e conduz o corpo sem insistir.

Toada ou dança Compasso típico Andamento Papel no desafio Sensação no arraial
Vira 3 por 4 Vivo Respostas rápidas, quadras curtas Rodopio e palmas altas
Chula 2 por 4 Moderado Quadras mais trabalhadas Passo marcado e conversa prolongada
Malhão 2 por 4 Médio-rápido Picaresca leve Saltos curtos e coro fácil
Cana verde 2 por 4 Variável Troca de provocações Marcações com balanço elástico
Tirana 6 por 8 Rápido Mostra de destreza Energia brilhante, pontas de virtuosismo

Cada toada pede um tipo de rima e um fôlego diferente. No vira, os versos saem curtos e diretos, quase sem adorno. Na chula, as ideias alongam-se, o humor ganha camadas, e a concertina desenha contracantos que dão tempo e cor às frases.

A mão direita fala, a esquerda responde

Quem toca concertina na festa aprende depressa que manda o ritmo, não o exibicionismo. A mão esquerda marca os baixos com parcimónia, alternando baixo e acorde para criar uma cama firme. A direita fraseia com clareza, articulando notas de empurrar e de puxar sem tropeçar no verso dos cantadores.

Algumas técnicas que fazem a diferença:

  • Marcação cruzada baixo-acorde, com acentos no tempo fraco para criar balanço minhoto
  • Ponteios entre quadras, em terças paralelas, que preparam o próximo ataque do cantador
  • Pequenos rubatos antes do fecho de quadra para suspender a plateia
  • Uso de registos sem terceiras nos acordes, mantendo a ambiguidade modal que serve vozes diferentes
  • Trocas de fileira discretas para modular meio tom quando um cantador varia a altura da voz

Bem tocada, a concertina é generosa. Sabe quando crescer e quando recolher. Aprende o respirar da praça, conversa com a dançarina na fila da frente, incentiva o miúdo que tenta o primeiro vira. É isto que a torna líder natural sem necessidade de palavras.

A fábrica do improviso

Improvisar não é magia espontânea sem treino. É artesanato invisível. Por trás de uma quadra que faz o largo ir abaixo, há um arsenal de técnicas que o cantador domina.

Padrões que aparecem com frequência:

  • Redondilha maior ou menor para manter o pulso do povo
  • Rimas emparelhadas simples, fáceis de agarrar por quem ouve
  • Imagens locais, da maré, do ouro, do lenço na cabeça, do rio e do monte
  • Provocações ternas entre pares, muitas vezes a jogar com diferenças entre freguesias
  • Ditos herdados, revirados no momento para se adequarem ao caso

Pequena amostra de quadras, nascidas da praça:

Toca alto minha amiga
que a noite pede calor,
Viana veste-se antiga
e o fole sopra sem dor.

A Senhora lá na capela
ouve a cidade a cantar,
cada quadra é uma janela
que se abre para o mar.

Entre um par de quadras, a concertina comenta. Um trinado curto, uma queda esperta, um passeio pelo registo agudo, e o público percebe a piscadela. O segredo está em não abafar a palavra. O desafio é de vozes, a concertina é cúmplice.

Quando a rua vira sala de aula

No norte, muitas escolas de música popular e associações têm classes de concertina. Há oficinas de fim de semana, encontros de tocadores, rodas abertas em cafés e coletividades. O método continua oral, baseado em melodia e repetição, com espaço para erro produtivo. Grava-se no telemóvel, pratica-se em casa, volta-se ao largo e testa-se no fogo.

Para quem começa:

  • Um instrumento com afinação padrão usada na região que frequenta, para poder tocar com os seus
  • Tempos marcados com os pés, desde cedo, para entranhar o balanço
  • Repertório de base: um vira, uma chula, um malhão
  • Duas ou três deixas de entrada para chamar cantadores
  • Humildade para ouvir os mais velhos e ousadia para arriscar uma quadra ou um ponteio novo

E para quem canta:

  • Exercícios de rima rápida com temas dados por amigos
  • Treino de respiração para dar o verso inteiro sem perder apoio
  • Escuta atenta da concertina, aguardando a cadência para pousar a última palavra
  • Um caderno de metáforas locais, recolhidas em feiras e tascas

Afinações e escolhas de instrumento

Não há uma única verdade quando se escolhe a afinação. Depende do repertório, das vozes com quem se toca e do gosto pessoal. Em Portugal, duas combinações aparecem com regularidade no contexto minhoto.

Afinação Ambiente sonoro Vantagens Pontos a vigiar
Ré-Sol (D-G) Brilho vivo, projeção forte Bom para ruas cheias, casa bem com vozes médias Pode cansar agudos em espaços fechados
Sol-Dó (G-C) Timbre mais encorpado Melodias redondas, conforto para quem canta grave Pede energia extra para cortar no bulício

Um conselho prático: antes de comprar, tocar com o grupo com quem se quer tocar. Sintonizar afinações evita lutas desnecessárias no primeiro arraial.

Amplificar sem perder o grão

Em palco, a concertina pode precisar de reforço. O ideal é captar a riqueza do fole e das palhetas sem transformar o som num bloco anónimo. Duas abordagens funcionam bem:

  • Microfones de pequeno diafragma, um por cada lado, montados próximo das grelhas, para captar ataque e corpo
  • Sistema interno discreto, com captação de contacto, combinado com microfone externo para devolver ar e respiração

Atenção à mistura com vozes. A concertina deve estar presente, mas deixar espaço para a dicção dos cantadores, que é onde vive o sentido. Num desafio, a palavra é rainha.

A cidade como cenário, o povo como autor

As festas trazem a procissão ao mar, os tapetes de flores, o brilho do ouro nas mordomas, os gigantones a marcarem passo pelo centro. No meio de tudo isto, as concertinas criam pequenos pólos de encontro. Há o palco principal, sim, onde se dão mostras, grupos convidados, desfiles organizados. E há o palco espontâneo, junto a uma porta de casa onde alguém puxou o fole e, de repente, nasceu uma roda.

As rusgas cruzam-se, cada uma com a sua personalidade. Em algumas, a concertina comanda, noutras abre espaço para cavaquinhos e violas, e quase sempre deixa um corredor para as vozes. As crianças entram de mão dada, aprendem a marcar o compasso com os pés, sorriem quando conseguem a volta inteira no vira. É assim que a tradição cria futuro, no gesto simples que se repete.

Fazer pontes com outras artes

O fole também conversa com outras linguagens. Há quem junte a concertina a percussões adufeiras, quem traga um contrabaixo para dar solo mais grave, quem experimente discretas colorações eletrónicas sem esconder a madeira. O desafio, mesmo quando se ousa, não perde a matriz. O humor mantém-se vivo, a métrica continua clara, e a praça reconhece-se no som.

Pequenas colaborações que têm resultado bem:

  • Voz coral de apoio no refrão, reforçando o coro do público
  • Dança contemporânea a partir de passos do vira, em palcos alternativos
  • Projetos pedagógicos onde os mais velhos contam histórias de desgarradas históricas e os miúdos respondem com quadras novas

Como ouvir melhor e participar com respeito

Quem chega de fora pode sentir a tentação de se pôr logo no centro. Vale a pena abrandar, observar, perceber quem conduz cada roda. A entrada certa transforma um curioso em cúmplice.

Dicas úteis:

  • Fique próximo de quem marca o ritmo, para apanhar os sinais de entrada
  • Se quiser cantar, sinalize com o olhar e um gesto ao cantador da vez
  • Aplauda a astúcia, não a agressão; ajude o ambiente a manter-se vivo e afável
  • Evite bloquear a roda de dança com filmagens longas; o momento vive melhor sem barreiras
  • Se for tocar, afine discretamente antes, e respeite o tom já estabelecido

Há também uma sensibilidade própria quando se cruza o espaço do arraial com momentos de devoção. Quando a procissão passa, a música recua. Quando a imagem é saudada, os cantadores calam-se. A festa tem medida, e é nela que todos cabem.

Pequenos segredos de tocadores e cantadores

Não há receita infalível, mas há truques que se afinam ao longo de anos:

  • O silêncio de meio segundo antes do punchline na quadra vale tanto como uma rima perfeita
  • A concertina que respira com o cantor, abrindo fole na inspiração, fecha com mais intenção na cadência
  • Um repertório curto, bem tocado, tem mais força do que cem modas mal arrumadas
  • As melhores respostas acontecem quando se ouve a plateia; o povo oferece temas em cada reação
  • O humor local aproxima muito mais do que referências distantes

Experimente, por exemplo, dar a volta ao malhão com um padrão de baixos mais leve, deixando espaço ao coro espontâneo. Ou uma chula falada em que a concertina faz apenas marcações nos finais de verso. Pequenas escolhas abrem grandes portas.

Um retrato em movimento

A meio da noite, quando as luzes dos arraiais parecem estrelas baixas e o cheiro da sardinha ainda paira, há um instante em que tudo se alinha. Duas concertinas tropeçam uma na outra, ri-se sem culpa, reatam no compasso seguinte, os cantadores trocam uma farpa doce sobre quem dança melhor no adro. Uma criança bate palmas fora do tempo, alguém ensina-lhe o passo, um idoso levanta-se com esforço para uma última roda.

No fim de uma quadra que fez o largo inteiro soltar o riso, a concertina segura o ar com um trinado curto. O fole encolhe devagar, a respiração volta ao peito, e a noite continua. Porque enquanto houver quem puxe por um verso bem apanhado e um par de dedos afiados no fole, a festa encontra sempre caminho. E é isso que faz a música florescer no coração da cidade, ano após ano.

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