História dos trajes tradicionais da senhora d’agonia
Quem chega a Viana do Castelo em agosto, no tempo da Senhora d’Agonia, percebe de imediato que a cidade respira tecido e memória. As ruas enchem-se de cor, de ouro e de passos seguros. Não são apenas roupas bonitas. São histórias vestidas, ditas por mãos que aprenderam com outras mãos, e que insistem em manter vivo um modo de apresentar quem se é, de onde se vem e o que se celebra.
O traje não é figurino inventado para turista ver. Nasceu do quotidiano do Minho atlântico, da lavoura e da faina, da ida à missa e da festa, dos bordados que se fazem ao serão, da economia do ouro que regressou com emigrantes e marinheiros. No tempo da romaria, esse património sai à rua com orgulho e hospitalidade.
Há quem chame a isto tradição. Outros dirão que é uma arte de vestir. Os dois têm razão.
De onde veio a forma de se vestir em Viana
A identidade minhota moldou-se numa terra de pequenos campos, ofícios domésticos e forte vida paroquial. A roupa acompanhou funções: peças robustas para o trabalho, tecidos nobres para o domingo, adornos de valor guardados para as grandes ocasiões.
- Linho e lã, produzidos em casa, dominavam a roupa do dia a dia.
- Tinturas naturais davam os castanhos, os azuis escuros, os pretos profundos.
- Com o tempo, o acesso a anil e cochonilha acendeu azuis e vermelhos intensos.
A devoção a Nossa Senhora d’Agonia, com raízes setecentistas, criou o cenário anual onde estas diferenças se tornavam visíveis para toda a comunidade. As mulheres mostravam o seu melhor traje, instrumentos de trabalho eram transformados em adorno, e a igreja, as ruas e o porto eram palco de uma hierarquia silenciosa que todos entendiam.
O que hoje se reconhece como modelo de Viana consolidou-se entre finais do século XIX e meados do século XX. Fotógrafos e colecionadores ajudaram a fixar formas e cores. Os ranchos folclóricos e as comissões de festa, já no século passado, reforçaram a codificação de peças, materiais e combinações. Mesmo assim, o traje não é museu. É roupa viva, usada, corrigida, herdada e reinventada com cuidado.
Cores, tecidos e a gramática dos bordados
Quem olha para uma lavradeira em vermelho percebe o efeito de conjunto: o tom encorpado da saia, a vibração dos bordados, o brilho do lenço, o recorte do colete. Nada está ali por acaso.
- Tecidos: lã, linho e algodão continuam a ser a base. O veludo aparece nos trajes mais ricos, especialmente o preto da mordoma.
- Cores: o vermelho e o verde marcam versões festivas da lavradeira; o azul mais sóbrio ou o preto surgem em contextos formais. Para trabalhar, predominam castanhos, riscas, tons crus.
- Bordados: ponto cheio, ponto matiz, crivo e recorte, com motivos florais e geométricos, ocupam saiotes, aventais, algibeiras e lenços. O chamado Bordado de Viana, com desenho vigoroso e cores vivas, é marca distintiva.
Motivos recorrentes nos bordados:
- Coração de Viana
- Espigas e ramos
- Cravos, rosas, folhas de videira
- Pássaros e pequenos laços
- Inicial bordada em lenços de afeição
Estes sinais têm leitura própria. O coração fala de afecto e fé, a espiga de fartura, as flores de alegria. Não é preciso legenda: quem cresceu na região lê as peças como se fossem cartas.
As peças que dão identidade ao conjunto
Falar de traje é falar de construção. Cada elemento cumpre função, equilibra volumes e cria linhas.
- Camisa de linho: corpo, gola e punhos trabalhados com rendas e nervuras. Serve de base e dá brancura ao conjunto.
- Colete: ajustado, realça o tronco. Nas lavradeiras, surge em lã com bordado rico; na mordoma pode dar lugar ao corpete de veludo.
- Saia: rodada e pesada, sustida por anáguas. Nas versões festivas, é a grande tela do bordado, onde cores e desenhos se organizam em faixas.
- Avental: tão importante como a saia. Protegia no trabalho, tornou-se peça de destaque na festa, com bordados intensos e barra bem desenhada.
- Algibeira: bolsa pendente, pequena mas determinante. Bordada, com aplicação de lantejoulas ou missangas em trajes ricos.
- Lenço do peito e lenço da cabeça: variam no padrão e na forma de atar. O primeiro cruza o peito, o segundo define a moldura do rosto.
- Meias e calçado: meias trabalhadas e sapatos com fivela completam a silhueta.
- Joias: colares, cordões e cruzes em ouro marcam estatuto e ocasião.
Tudo isto requer ajuste e mão treinada. Vestir uma mordoma exige gesto seguro. O lenço não cai porque foi preso com jeito aprendido.
Ouro, filigrana e estatuto social
Em Viana, o ouro é mais do que adorno. É poupança, herança e linguagem de prestígio. Chegou com várias rotas: o comércio atlântico, a emigração, a ourivesaria local. Fixou-se no peito das mulheres em cordões, contas e cruzes. A filigrana, leve e minuciosa, deu forma a corações, arrecadas e pendentes.
Peças frequentes:
- Coração de Viana em filigrana
- Cruzes lisas e cruzeiros trabalhados
- Contas de Viana, regulares e cheias
- Brincos à Rainha e arrecadas
- Alfinetes de peito para prender lenços
No Desfile da Mordomia, milhares de mulheres exibem o ouro herdado. É um inventário público da memória familiar. Cada cordão tem história. Cada alfinete já segurou o lenço de uma avó.
O peso do ouro tem regras tácitas. Não se ostenta em traje de trabalho. Cresce do domingar para o de noiva e culmina no de mordoma. A elegância não está apenas na quantidade, mas no equilíbrio entre peças.
Tipos de traje em circulação
O universo de Viana reconhece variantes que oscilaram ao longo do tempo. A terminologia pode mudar de aldeia para aldeia, mas os grandes conjuntos identificam-se com facilidade.
Tipo de traje | Cores e tecidos | Peças chave | Uso e ocasião | Joias e adorno |
---|---|---|---|---|
Lavradeira vermelho | Lã vermelha, bordado colorido | Saia rodada bordada, avental, algibeira, lenços | Festa popular, domingo | Ouro moderado, brincos e um ou dois cordões |
Lavradeira verde | Lã verde, contrastes em branco/azul | Idêntico ao vermelho, variação cromática | Festa, arraial | Ouro semelhante ao vermelho |
Lavradeira azul | Tons azuis, bordados mais contidos | Menos contraste, elegância sóbria | Missa, cerimónia local | Ouro medido, cruz e contas |
Domingar | Tecidos mais simples, cores vivas | Menos bordado, corte idêntico | Domingo e pequenas festas | Joias discretas |
Trabalho | Lã, linho cru, riscas e castanhos | Avental funcional, lenço prático | Lida diária | Sem ouro ou apenas aliança |
Mordoma | Veludo preto, camisa ricamente trabalhada | Corpete, saia de veludo, algibeira bordada | Grandes momentos da romaria | Ouro em abundância, cruzes e cordões |
Noiva | Predominância do preto, elementos delicados | Blusa de linho finíssimo, peças em veludo | Casamento tradicional | Ouro escolhido com esse propósito |
Há nuances dentro de cada categoria. Alguns grupos preservam variantes de freguesia com pequenos pormenores nos bordados, nos nós dos lenços ou na forma da algibeira. A diversidade é sinal de vitalidade.
A romaria como palco e como casa
A Senhora d’Agonia acontece na cidade, mas chama gente de todo o distrito e da diáspora. O programa combina rituais religiosos, mar e rio, música, gigantones e fogo de artifício. No centro, os trajes circulam.
- Desfile da Mordomia: centenas ou milhares de mulheres vestidas de negro cintilante e luz de ouro. Não é mero espetáculo. É reconhecimento público de um papel feminino que organiza casa, fé e herança.
- Cortejo Etnográfico: mostra ofícios, colheitas, meios de transporte e as variações de traje em contexto. Um livro aberto em movimento.
- Procissão ao mar: devoção que liga cidade e faina, com embarcações engalanadas e lenços que ondulam no vento salgado.
O traje vive aqui como viveu durante décadas: na praça, na igreja, nas margens do Lima. A cidade torna-se uma sala onde as famílias apresentam as suas peças, reparam gestos, afinam nós, partilham truques.
Cronologia sucinta de um vestir que perdura
- Séculos XVII e XVIII: consolidação do uso do linho e da lã, traje camponês funcional, devoções locais em crescimento.
- Século XVIII tardio: cultos marianos reforçam festas, ouro começa a fixar-se no peito das mulheres de Viana com maior visibilidade.
- Século XIX: novas tinturas intensificam paletas, bordados regionais ganham traço próprio, ourivesaria minhota prospera.
- Finais do século XIX e início do XX: fotógrafos imortalizam modelos, coleções privadas reúnem peças, grupos de dança popular surgem.
- Décadas de 1930 a 1960: codificação de conjuntos por comissões e grupos, romaria amplifica desfiles, traje de mordoma ganha centralidade no imaginário local.
- Final do século XX e XXI: revitalização artesanal, certificação de bordados, escolas e oficinas, criadores inspiram-se sem descaracterizar.
Cada passo desta linha não apagou o anterior. O traje é soma, não substituição.
Fazer, ajustar, transmitir
Uma camisa bem feita não nasce de um vídeo curto. Pede horas, tecido certo e olho treinado. Bordar a barra da saia com equilíbrio exige desenho e paciência. Não se aprende sozinho, nem depressa.
As alfaiatarias e as modistas da região mantêm um saber prático: tirar medidas, cortar, experimentar, corrigir. As bordadeiras guardam cadernos de motivos, esquemas antigos e uma liberdade controlada para adaptar. Ourives e filigraneiros lutam por um ofício exigente, encadeando fio sobre fio até o coração ganhar leveza.
Em casas onde o traje ainda é usado, a transmissão passa por rituais de família. A mãe prende o lenço da filha, a tia explica o avental, a avó confere o ouro. Repete-se de ano para ano. Quando algo se perde, procura-se quem saiba refazer.
Como escolher materiais fiéis à tradição
Para quem começa ou deseja refazer um conjunto com rigor, algumas linhas orientadoras ajudam.
- Preferir linho e lã de boa gramagem. O peso dá queda à saia e presença ao conjunto.
- Bordar com linhas de algodão e lã nas cores tradicionais, evitando brilhos sintéticos em excesso.
- Respeitar as proporções de bordado na saia e no avental: a barra baixa não deve engolir a peça.
- Usar veludo de algodão em trajes ricos, com forros bem assentes.
- Procurar joias junto de ourives locais com trabalho de filigrana reconhecido.
A autenticidade não é fetiche. É coerência material e formal, que faz o traje respirar como sempre respirou.
Vestir não é só pôr a roupa
A forma de vestir dá carácter. Há uma ergonomia do traje.
- O lenço da cabeça prende-se sem esmagar o rosto.
- O do peito cruza de modo a valorizar a linha do colete e a joalharia.
- A algibeira fica visível, mas não rouba a cena à barra bordada.
- As meias têm altura e desenho pensados para o sapato certo.
Este saber, quase coreográfico, passa de mulher para mulher. No dia do desfile, há sempre quem ajude quem se atrasa.
Cuidar, guardar, emprestar
Boas práticas de manutenção prolongam a vida das peças.
- Lavar à mão camisas e lenços, secando à sombra para proteger bordados.
- Arejar saias e aventais em cabides largos, sem comprimir bordados.
- Guardar joias em panos individuais, longe de humidade e perfumes.
- Fotografar cada conjunto completo, criando registo para futuras composições.
- Etiquetar peças herdadas com informação sobre origem e datas quando possível.
Emprestar traje implica confiança e instruções. Um pequeno guia de cuidados, dentro da caixa, evita danos e mal-entendidos.
A economia por detrás do brilho
O traje gera valor económico. Há oficinas de costura, ateliês de bordado, ourivesarias, lojas de materiais, fotógrafos, guias e museus que se alimentam deste ecossistema cultural. Cada agosto, a cidade vê crescer a procura de serviços ligados a arranjos, empréstimos e restauros.
Uma cadeia sustentável precisa de formação e tempo. Pagar horas de bordado é reconhecer um saber. Optar por ourives locais em vez de imitações prensadas preserva a singularidade do ouro de Viana. Comprar menos e melhor é, aqui, mais do que lema: é condição para a continuidade.
Olhar com atenção durante a festa
Para quem visita, vale a pena preparar o olhar. Há detalhes que passam depressa no meio da multidão.
- Observe as barras das saias: a composição dos motivos e o equilíbrio de cores.
- Repare na variedade dos lenços, desde os floridos estampados aos lisos com barra bordada.
- Note a posição e a sobreposição das joias, como dialogam com o lenço do peito.
- Veja como o preto do veludo da mordoma absorve a luz, deixando o ouro falar.
Fotografar com respeito, pedir licença para um retrato, agradecer. O traje é pessoa, não é vitrina.
Um percurso pela cidade para quem chega em agosto
Viana recebe com ruas decoradas e um programa cheio. Para mergulhar no tema do traje, um roteiro simples ajuda.
- Manhã: visita aos espaços museológicos dedicados à etnografia e ao traje local, com tempo para ler legendas e perceber materiais.
- Meio-dia: paragem em ourivesarias com filigrana tradicional, conversando sobre processos e diferenças de acabamento.
- Tarde: assistir aos ensaios ou concentrações antes do Desfile da Mordomia, onde se veem os ajustes finais.
- Noite: observar o movimento nas praças, quando trajes e famílias descansam da correria e a conversa flui.
Se houver oportunidade, vale entrar numa oficina ou falar com uma bordadeira. Uma dica de quem sabe vale por muitas páginas.
O que muda e o que fica
Novas gerações testam caminhos: reinterpretam bordados em peças contemporâneas, usam cores invulgares em acessórios, introduzem conforto em bases invisíveis. Desde que a coluna vertebral do conjunto se mantenha, a conversa entre passado e presente é saudável.
Há também quem procure reconstruções rigorosas de épocas específicas, com recurso a documentação e fotografia antiga. Este trabalho alimenta museus, publicações e coleções que servem de referência aos praticantes.
Entre inovação e fidelidade, a comunidade criou um consenso prático: no dia maior, seguem-se as linhas reconhecidas. Em contextos criativos, abre-se espaço para variação vigiada.
Perguntas que aparecem muitas vezes
- Porque é tão marcado o preto na mordoma? O veludo escuro valoriza o brilho do ouro e a sobriedade da solenidade. A presença do negro, longe de luto, comunica peso simbólico e cerimónia.
- O traje de lavradeira tem de ser vermelho? Não. O vermelho é um clássico festivo, mas o verde e o azul também têm forte presença, com variações locais.
- O ouro é obrigatório? Não. Há trajes inteiros sem uma peça de ouro. Em contexto festivo, a joalharia tradicional dá sentido histórico, mas não é imposição absoluta.
- Existem regras fixas para o número de cordões? A tradição tem hábitos e bom senso, não um regulamento universal. O equilíbrio e a ocasião determinam.
Glossário breve
- Algibeira: bolsa bordada pendente, elemento identitário do traje feminino minhoto.
- Avental: peça frontal protetora e decorativa, essencial em todos os conjuntos.
- Colete: peça justa do tronco, muitas vezes bordada nas lavradeiras.
- Filigrana: técnica de ourivesaria com fios finíssimos de metal que formam desenhos.
- Lenço do peito: lenço dobrado e cruzado sobre o tronco, preso com alfinetes e valorizado por joias.
- Mordoma: mulher que organiza ou representa a mordomia da festa, com traje próprio em veludo preto e ouro abundante.
- Traje domingar: conjunto de domingo, mais simples do que o de festa maior, mais cuidado do que o de trabalho.
O que se veste em Viana no tempo da Senhora d’Agonia é uma lição de continuidade. Cada fio, cada ponto e cada corrente contam passagens de vida, de fé e de pertença. A cidade inteira sabe ler esse texto. Quem a visita, com um pouco de atenção, aprende a ouvir com os olhos.