História dos lenços de viana e suas tradições

No coração de agosto, quando Viana do Castelo vibra ao som de bombos e gaitas, vê-se um mar de cores a ondular por cima de saias rodadas e aventais rendados. São os lenços, de franjas longas, vermelhos vivos ou amarelos luminosos, que dão movimento ao traje e devolvem à cidade uma memória que é tanto visual como afetiva. Há quem os considere o toque final de um conjunto perfeito; outros falam deles como se fossem cartas abertas, cheias de mensagens bordadas.

A verdade é que os lenços de Viana guardam histórias cruzadas de mulheres, de portos e de feiras, de moda e de devoção. E quanto mais se olha, mais camadas aparecem.

Primeiras aparições e a mudança de materiais

No século XIX, os lenços entram de forma consistente no guarda-roupa das lavradeiras do Alto Minho. Em meados de oitocentos, relatos assinalam a presença de lenços à cabeça, exuberantes em cor e em presença, como parte do traje diário e festivo. Nessa altura, predominava o algodão nacional, muito em particular as chitas estampadas produzidas por fábricas como a de Alcobaça. Bordavam-se alguns motivos, mas comedidos, e a prática apontava para o uso habitual: um lenço na cabeça, outro sobre o peito, ambos rematados em franjas que balançavam ao andar.

A partir da década de 1870, a história acelera. Os mercados minhotos começam a receber lenços de lã fina, importados de centros europeus industriais. Os novos tecidos trazem estampagens ricas, franjas densas, cores saturadas. A peça transforma-se: de complemento prático passa a protagonista, sobretudo nos dias de festa. O gosto local acolhe essa novidade com apetite, e em pouco tempo os lenços importados suplantam as versões domésticas quando a vila se enfeita.

Comércio, porto e influências europeias

Viana do Castelo vivia de e para o mar. O porto, que servia exportações e abastecia as feiras, foi ponte para a chegada de tecidos e padrões vindos de longe. Entre os fornecedores de destaque conta-se a fábrica russa de Pavlovo Posad, em laboração desde o século XVIII, cuja produção atingiu o Minho na viragem do século. A influência não foi casual: os seus lenços de lã, de toque suave e impressão detalhada, encaixaram-se com precisão no imaginário festivo vianense.

Este cruzamento económico ajuda a explicar um paradoxo curioso: praticamente todo o traje à vianesa nascia de mãos e ofícios regionais, exceto, por muitas décadas, o lenço franjeiro. A peça tornou-se o único elemento sistematicamente importado do conjunto. Uma singularidade que reforça o lugar do lenço como sinal de abertura de Viana aos ventos do comércio e às modas europeias, sem que por isso se perdesse o cunho local na forma de o usar.

Do quotidiano à festa: como o estilo ganhou palco

A mudança de material veio acompanhada de um salto estético. Os lenços de chita, mais modestos, cedem terreno aos franjeiros de lã luxuosos, com flores grandes, folhas sinuosas e cornucópias. O acabamento em crochê ganha mais importância, as franjas alongam-se, e o conjunto do traje ajusta-se para dar palco ao lenço. O vermelho de fogo, o amarelo-canário, os azuis de lago e os verdes de lameiro passam a compor uma paleta que é logo reconhecida nas romarias.

Com o século XX, os grupos folclóricos e a promoção do traje em cortejos e festivais reforçam o uso cerimonial. Há momentos de estandardização e de enquadramento oficial, sobretudo a partir da década de 1930, que consolidam repertórios de cores, cortes e combinações. Já no final do século, a industrialização têxtil, com fibras sintéticas mais baratas, espalha réplicas. A reação, no novo milénio, traz uma volta consciente à qualidade: lã, seda, estampas históricas e edições que respeitam arquivos, ao lado de bordados locais sob certificação.

O que dizem os motivos: flores, cornucópias e corações

Há uma iconografia que se repete, e não por acaso. Os motivos florais simbolizam fertilidade, beleza rural e o ciclo das estações. Ramos, silvas, hastes e folhas ancoram o tecido no campo, como se o lenço transportasse a natureza para a festa. As cornucópias, associadas à abundância, dialogam com outro traço vianense: o ouro, que nas mordomas se mostra com generosidade.

  • Corações: falam de laços, promessas e fidelidades. Em certos lenços de namoro, surgem acompanhados de versos e nomes.
  • Aves, sobretudo pombas: paz doméstica e pureza de intenção.
  • Motivos geométricos: rodas, contornos “boca de leão”, remates que equilibram as composições.

Não há um padrão único e universal. Existem famílias de desenhos e paletas, e uma memória coletiva que associa cores a freguesias, sensibilidades e circunstâncias.

Ocasiões de uso: romarias, mordomas, namoro e luto

O grande palco é a Romaria de Nossa Senhora d’Agonia, em agosto. Aí, a procissão das mordomas dá um retrato completo do traje festivo, com lenço de amor no ombro, vela na mão, ouro ao peito. Nos cortejos, a cadência do andar e das danças faz vibrar as franjas, multiplicando o efeito visual.

Há usos marcados pelo sentimento. Nos lenços de namorados, bordados em linho ou algodão, as raparigas gravavam quadras amorosas e sinais de teor simples e direto. A oferta valia como declaração. Em sentido oposto, o traje de dó pedia sobriedade: lenços escuros, azuis fechados ou roxos, diziam ao vizinho e à comunidade aquilo que não se punha em voz alta.

No quotidiano, o lenço foi proteção e distinção, prático no trabalho e elegante na missa. Essa plasticidade explica o seu sucesso ao longo de tantas décadas.

Um património que se aprende em casa: transmissão e oficinas

Durante gerações, a lama das hortas, a sala com a arca do enxoval e a cozinha de lume baixo foram aulas improvisadas. Mães e filhas experimentavam pontos, escolhiam cores, afinavam a mão no bordado. A passagem de saberes fazia-se por observação e repetição, com a ajuda da vizinhança.

Com o tempo, juntaram-se associações e escolas, oficinas municipais, museus que documentaram processos e ensinaram técnicas. O resultado é um equilíbrio fértil: a prática íntima sobrevive, a par de uma rede de formação que garante continuidade e renovação. Em festas, os ensaios dos grupos folclóricos funcionam como laboratório vivo. Quem entra aprende a vestir, a pregar o lenço, a cruzá-lo no peito, a zelar pelas franjas.

Dos salões aos palcos: folclore, ranchos e museus

A cultura popular deu aos lenços um palco permanente. Os ranchos de lavradeiras tornaram-se embaixadores dessa estética, apresentando o traje completo em danças onde o lenço é parte do gesto. O movimento amplia-se com o século XX, durante o qual os cortejos etnográficos institucionalizam a imagem do traje e fazem do lenço um símbolo reconhecido no país.

O Museu do Traje de Viana do Castelo, aberto em 1997, colheu essa energia. Nas suas salas, o visitante encontra peças originais, linhas interpretativas e atividades que aproximam o público dos processos de produção, do contexto social e da variedade de usos. Exposições temáticas, muitas vezes dedicadas a rituais do namoro ao casamento, têm dado destaque aos lenços como objetos de afetos e de pertença.

Linha do tempo dos lenços de Viana

Período Materiais e técnicas Notas
Até ~1870 Chitas de algodão; bordados simples; franjas discretas Produção nacional. Uso quotidiano e festivo nas aldeias do Lima
1870–1900 Lãs finas importadas; estampas ricas; franjas densas Entrada massiva de lenços estrangeiros; triunfo nas festas
1917 Exposição de bordados em Viana Impulso à produção artesanal e à renda de bordadeiras
1930–1960 Traje promovido em cortejos; cânones de apresentação Afirmação identitária; repertórios consolidam-se
Final séc. XX Sintéticos acessíveis; turismo cultural Risco de padronização e perda de qualidade
2005–hoje Certificações; reedições históricas; lã e seda Selo “Bordado de Viana do Castelo” e caderno de especificações do traje

Certificação, regras e quem as guarda

O esforço para salvaguardar autenticidade traduz-se em medidas concretas. O bordado de Viana tem indicação geográfica protegida, com regras que definem materiais, pontos e acabamentos. Artesãs certificadas mantêm um padrão de qualidade e recebem visibilidade. Mais tarde, o caderno de especificações do traje fixou orientações sobre cores, composição e modos de uso, incluindo referências para os lenços que se combinam com cada conjunto.

Museus, autarquias e cooperativas trabalham em rede: documentam, formam novas bordadeiras, recolhem depoimentos e preservam acervos. Mas não se trata de cristalizar um objeto. A ideia é garantir permanência sem apagar diversidade, permitindo que a prática respire e dialogue com o presente.

Desafios do presente: turismo, mercado e autenticidade

O interesse de visitantes trouxe vitalidade e procura. Ao lado, surgiram versões de produção em massa, com materiais sintéticos, muitas vezes com desenho genérico e franjas simplificadas. A popularidade ajuda a difundir a imagem, mas carrega o risco de confundir o olho e desvalorizar o fazer manual.

Uma resposta eficaz tem sido a reedição fiel de modelos históricos com lã e seda, produzidos em pequenas séries por oficinas especializadas, e a educação do público para a diferença entre um franjeiro de qualidade e um exemplar meramente decorativo. Outra linha de ação passa por mostrar a variedade real: existem muitos padrões legítimos, mais do que o par de “clássicos” que se tornaram ícones de catálogo.

Também o ensino público, com oficinas abertas e demonstrações ao vivo, converte a compra em experiência, aproximando quem visita da história por detrás do tecido.

Como reconhecer qualidade num lenço franjeiro

  • Toque e queda: lã fina ou seda têm corpo e fluidez. Acrílico tende a ser mais rígido ou com brilho plástico.
  • Estampagem: contornos nítidos, sem “sangrar” de cor, indício de impressão cuidada.
  • Franjas: densas, regulares, por vezes rematadas à mão ou com crochê bem executado.
  • Paleta: cores vivas e profundas, com harmonia entre fundo e motivos florais.
  • Dimensão: generoso o suficiente para cobrir cabeça ou peito com boa folga, sem sobrar tecido disforme.
  • Proveniência: etiqueta clara, oficina identificada, certificado quando aplicável.

Dica útil: ao abrir o lenço sobre uma superfície plana, observe a simetria do desenho e o alinhamento das franjas. Defeitos grosseiros são mais comuns em produções apressadas.

Cuidados de uso e manutenção

  • Arejar após cada uso, longe do sol direto.
  • Limpeza a seco para lã e seda; no algodão, lavagem suave à mão, sem torcer.
  • Guardar dobrado em papel de seda, franjas alinhadas, dentro de saco têxtil respirável.
  • Evitar pendurar pelas franjas. Ao escovar, usar escova macia, movimentos leves.
  • Em eventos ao ar livre, atenção a fumo e gorduras. Pequenas manchas devem ser tratadas de imediato.

Pequenos gestos prolongam décadas a vida de um lenço, e peças antigas merecem inspeção anual para prevenir desgaste.

Roteiro breve para quem quer ver e aprender em Viana

  • Museu do Traje de Viana do Castelo: coleção, exposições temporárias e oficinas.
  • Romaria de Nossa Senhora d’Agonia: desfiles de mordomas, cortejos e danças que mostram o traje em contexto vivo.
  • Lojas e ateliers de artesanato certificado: diálogo com bordadeiras e possibilidade de encomendar peças.
  • Programas educativos municipais: sessões sobre bordado e indumentária tradicional ao longo do ano.
  • Apresentações de ranchos folclóricos: oportunidade para observar montagem do traje e uso coreográfico do lenço.

Uma peça, muitas vozes

Os lenços de Viana são ponto de encontro entre mãos que bordam, rotas que trazem tecidos de longe, festas que chamam a toda a cidade. Guardam memórias de amores escritos em quadras, de lutos discretos, de ninhadas de flores trançadas em lã. Ao mesmo tempo, apontam para um futuro que respeita o gesto antigo e aposta em qualidade e conhecimento.

Vê-los dançar ao vento das procissões, erguer-se sobre ombros de mordomas ou repousar na arca da avó é entender como um quadrado de tecido pode falar por uma comunidade inteira. E como, com cuidado e intenção, continuará a fazê-lo.

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