Lenços de viana: tradição e moda

Ao dobrar a esquina da Praça da República em agosto, vê-se um mar de cor e movimento. É Viana do Castelo em festa. Entre ouro, bordados e saias de lã, sobressaem panos quadrados que ondulam como bandeiras íntimas. São peças pequenas no tamanho e imensas no significado, como os icônicos lenços de viana, cuja história dos lenços remonta a tempos antigos. Carregam histórias de mulheres, de freguesias e de uma cidade que soube transformar um adereço de origem longínqua em sinal maior de identidade.

O que define os Lenços de Viana

Esteticamente, há elementos que saltam à vista:

  • Formato quadrado, com desenho central e um remate ornamental junto às bordas
  • Franjas longas, feitas e aplicadas à mão
  • Estampados ricos em motivos florais, cornucópias, ramos, por vezes corações
  • Cores saturadas e vivas: vermelho “ardente”, azul profundo, amarelo-canário, roxos e laranjas

Funcionalmente, o traje tradicional da lavradeira pedia dois lenços franjeiros: um na cabeça, outro cruzado ao peito, muitas vezes referidos como lenços de Viana. A combinação não é aleatória; é linguagem visual. Em Viana e arredores, cada freguesia construiu preferências cromáticas, sinalizando pertenças locais e códigos de festa.

Importa lembrar que se trata de artigos estampados, não bordados. A diferença é relevante para quem os confunde com panos de ombros bordados de outras regiões. O desenho nasce em fábrica, chega em rolos, e o toque final pertence às mãos vianenses que cortam, embainham e franjam. Aí está parte do seu caráter.

De onde vieram e como se tornaram vianenses

Nem sempre as mulheres do Alto Minho usaram estes modelos em lã ou seda. Até meados do século XIX, predominavam lenços de chita de Alcobaça. A partir da década de 1870, chegam “véus” de lã fina, com estampagem detalhada e franjas, importados do estrangeiro. Rapidamente conquistam o gosto local.

Há registos fascinantes. Em 1852, durante a visita de D. Maria II, raparigas de Geraz do Lima adoptam o verde, cor associada à Casa de Bragança. Em 1885, Ramalho Ortigão descreve o mercado de Viana coberto por lenços vermelhos, azuis, amarelos e roxos, como um jardim portátil. A moda estrangeira cruza-se com os hábitos festivos da região e cristaliza num traje que se tornará ícone nacional.

A incorporação foi orgânica. Famílias, paróquias, mordomias e, mais tarde, grupos folclóricos fixaram estilos e regras do bem trajar. No século XX, estudiosos e colecionadores trataram de documentar e ensinar. Hoje, o Museu do Traje, a autarquia e associações culturais mantêm vivo esse saber.

Ofício e técnica: do rolo ao remate

O processo de produção contemporâneo combina indústria e artesanato:

  1. Desenho: artesãos e casas locais pesquisam padrões antigos e criam composições novas, sempre dentro da gramática tradicional.
  2. Estampagem: os desenhos seguem para fábricas especializadas no estrangeiro, que imprimem os tecidos em lã fina ou seda (e nalguns casos algodão).
  3. Acabamento: de volta a Viana, o rolo é cortado, faz-se a bainha miúda, e as franjas são acrescentadas à mão, ponto a ponto.

Durante décadas, muitas artesãs franjavam os próprios lenços em casa. Hoje, equipas de bordadeiras reformadas e pequenos ateliês partilham a carga. A matéria-prima evoluiu: o mercado com artigos acrílicos levou vários fabricantes locais a apostar em lã e seda de melhor toque e queda. Nas estampas, o público aprendeu a reconhecer a cornucópia circular popularizada entre as décadas de 1910 e 1920, mas ressurgem também modelos mais antigos, com cornucópias pontiagudas.

Há coerência no conjunto: inovação contida, fidelidade aos motivos, qualidade de execução. É nessa combinação que reside a sua força.

Cores que falam de lugares

Durante muito tempo, o vermelho dominou o imaginário. Ainda hoje é a cor mais associada à festa e à mordomia. Mas o mapa cromático é rico.

  • Areosa: predomínio do vermelho intenso
  • Afife: amarelo-canário na cabeça, laranja ao peito
  • Geraz do Lima: verde consagrado após a visita régia de 1852
  • Outras freguesias: azuis, roxos e misturas que marcam identidades paroquiais

Este jogo cromático cria um diálogo silencioso entre aldeias. No cortejo, o olhar treinado consegue ler a geografia pelo tecido.

Linha do tempo resumida

Ano Acontecimento Impacto nos lenços
1852 Raparigas de Geraz do Lima usam lenço verde numa visita régia Fixação simbólica da cor local
1870–1880 Chegada maciça de lenços “estrangeiros” em lã fina Consolidação do formato e do franjado
1885 Ortigão descreve o mercado de Viana cheio de cores Validação literária do uso festivo
1919 1.º Certame Regional de Danças e Descantes Promoção pública do traje
1920s–30s Surgem grupos folclóricos do Alto Minho Difusão e estudo sistemático
2013–2016 Caderno de Especificações e registos oficiais Proteção e padronização técnica
2018 Reconhecimento político do potencial para UNESCO Projeção nacional
2020 Classificação como Património de Interesse Municipal Valorização legal e cultural

Palcos onde brilham

A grande vitrine é a Romaria de Nossa Senhora d’Agonia, em agosto. No sábado da Mordomia, centenas de mulheres atravessam a cidade num cortejo que parece um rio de franjas e cornucópias. O domingo leva a devoção ao cais, na Procissão ao Mar. Em 2023, quase mil mulheres, vindas de vários países, desfilaram com o traje, numa demonstração transnacional de pertença.

A semana inclui ainda:

  • Festa do Traje: espetáculo comentado, onde cada freguesia apresenta o seu conjunto, peça a peça
  • Feira de Artesanato: dezenas de artesãos locais mostram e vendem lenços de viana, ouro e bordados genuínos
  • Encontros de ranchos e grupos folclóricos que mantêm o traje fora do calendário da romaria

Estes eventos funcionam como escola ao ar livre. A tradição ganha novos praticantes e bons olhos críticos.

Do traje à passerelle: moda com raízes

O século XXI trouxe uma aproximação entre o adereço tradicional e o vestuário urbano. Várias criadoras e marcas da região transformaram o repertório vianense em matéria de design.

  • Isabel Lima levou para a passerelle uma leitura ampla do traje paroquial, valorizando silhuetas, cores e acessórios.
  • Del Rio Classic cruza cortes contemporâneos com detalhes e tecidos que remetem aos panos franjeiros.
  • Amor com Graça transporta padrões e cores para acessórios infantis, num registo leve.
  • Coisas com Gosto transcreve a gramática dos lenços e da filigrana para objetos de madeira decorativos.
  • Artesãos como Ricardo Mónica investigam padrões esquecidos, redesenhando-os para produção atual, sempre com franja manual.

O resultado é visibilidade. Nas redes, em feiras e desfiles, o lenço sai do enquadramento estritamente folclórico e convive com blazers, denim e vestidos lisos. Essa convivência só funciona porque há substância por trás: técnicas, padrões e uma comunidade que os legitima.

Como usar hoje sem perder o norte

Propostas de styling para o dia a dia:

  • Ao pescoço: noz simples curta, deixando as pontas e a franja à vista
  • Sobre os ombros: triângulo grande, preso por um alfinete discreto
  • Na cabeça: nó baixo na nuca, com o bico do lenço centrado na testa
  • No punho ou na alça da mala: toque de cor que não pesa
  • Cinto improvisado: enrolado e passado por passadores, criando contraste numa peça neutra

Duas regras de ouro:

  1. O lenço é protagonista. Dê-lhe espaço com peças lisas e cortes limpos.
  2. A franja pede movimento. Evite esconder o remate, que é parte da beleza.

Autenticidade, certificação e o papel das instituições

A cidade organizou-se para proteger o seu património têxtil, valorizando a história dos lenços que são emblemáticos da região. O Caderno de Especificações define materiais, proporções e técnicas do traje à vianesa, incluindo parâmetros para os lenços franjeiros. A classificação municipal como património reforça o compromisso público com a sua salvaguarda.

O Museu do Traje tornou-se casa de estudo e divulgação: coleções, exposições e oficinas colocam alunos, visitantes e artesãos a conversar. Figuras como Francisco Sampaio contribuíram para transformar festa e traje em assunto de política cultural, turismo responsável e educação.

Há aqui um equilíbrio inteligente. Reconhece-se que os panos são de origem industrial e, por vezes, estrangeira, mas protege-se o desenho, a prática local do acabamento e a coerência com o traje maior que lhes dá sentido.

Guia rápido de compra e cuidado

Check-list de qualidade ao comprar:

  • Toque do tecido: lã fina ou seda têm corpo e queda; acrílicos são leves e pouco consistentes
  • Estampa nítida: contornos definidos e cores profundas
  • Franja manual: olhe o nó e a inserção; trabalho irregular demais pode denunciar fraca execução
  • Bainha miúda e discreta
  • Informação do artesão ou casa vianense responsável pelo acabamento

Manutenção em casa:

  • Lavagem à mão, água fria, detergente suave
  • Não torcer; pressionar com toalha para retirar excesso de água
  • Secar na horizontal
  • Passar a ferro com pano protetor, temperatura adequada à fibra
  • Guardar estendido ou enrolado; evitar dobras sempre no mesmo sítio para não vincar a estampa

Reparações:

  • Franjas soltas podem ser refeitas por artesãs locais
  • Pequenas paragens na trama resolvem-se com técnica de re-tecelagem fina
  • Se o problema é na estampa (descorar), não há cura; previne-se com cuidado na lavagem e na exposição solar

Motivos que contam histórias

A história dos lenços vianenses mostra que os seus padrões não são meros enfeites. Cornucópias, flores e enrolamentos vegetalistas falam de abundância, fertilidade e celebração. O coração, que em Viana encontra no ouro a sua expressão mais famosa, por vezes aparece também subtendido nos arabescos do tecido. Há uma continuidade visual entre panos, algibeiras com missangas, coletes com lantejoulas e a filigrana. Tudo joga para o mesmo lado: criar um conjunto opulento, alegre, irresistível ao olhar.

A repetição é parte da linguagem. Mesmo quando um artesão reinterpreta um desenho antigo, reconhece-se a gramática: simetria, florescimento a partir do centro, orlas que molduram a peça. Esse vocabulário permite inovação sem descaracterização.

Moda, turismo e economia local

Cada romaria mobiliza residuais mas relevantes cadeias de valor: ateliês de franjado, lojas de ouro, alfaiates, vendedores de linho e lã, escolas de danças, grupos folclóricos. O lenço, pelo preço mais acessível do que uma saia ou um colete bordado, costuma ser a porta de entrada para muitos visitantes que desejam levar um fragmento autêntico de Viana, especialmente os tradicionais lenços de Viana.

Três pontos que fazem a diferença:

  • Transparência na origem e no acabamento
  • Preço compatível com trabalho manual real
  • Inserção em redes locais de artesãos e lojas reconhecidas

Quando estes três se juntam, o objeto que chega ao armário do comprador é mais do que um souvenir. É participação consciente numa tradição viva.

Perguntas frequentes

  • É “errado” usar lenço de Viana fora do traje completo? Não. O uso urbano e criativo é comum e bem-vindo, desde que respeitoso com a peça e a sua estética.
  • Existem lenços 100 por cento locais? Os desenhos e o acabamento são vianenses. A estampagem do tecido é industrial e realizada fora. É assim desde o século XIX.
  • Como reconhecer um padrão antigo reeditado? Procure referências a datas e linhas de pesquisa do artesão. Cornucópias em bico, por exemplo, remetem a modelos de viragem do século XX.
  • Que cor escolher? Vermelho é clássico e fotogénico. Azul oferece sobriedade. Verde tem história em Geraz do Lima. Amarelo e laranja dão luz ao rosto. A melhor cor é aquela que conversa com o seu guarda-roupa.

Um símbolo que se usa

Os lenços de Viana e os panos franjeiros de Viana não estão presos a vitrinas. Vivem no corpo e na rua. Encantam quem chega e reafirmam quem já pertence. A cidade soube transformar importações em marcas suas, e devolveu-as ao país sob a forma de património. Entre a mão que franja e o passo que desfila, há uma cadeia de confiança que atravessa gerações.

Talvez seja esse o segredo do seu apelo duradouro. Um objeto textil ao mesmo tempo útil, belo e identitário. Uma cor que ilumina rostos. Um desenho que se move com o vento. E uma memória que se renova sempre que alguém, pela primeira vez, pega num lenço e o prende ao peito.

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